Crise sanitária e populismo

A covid-19 tornou evidente o fracasso dos líderes populistas na gestão da pandemia.

O populismo sempre se alimentou de falsas emoções e vagas sensações, mas também de frustrações e ressentimentos de camadas da população, que deram sustentáculo às suas provocações e intrigas. A doutrina e modo de comunicação de qualquer grupo populista é necessariamente simplista, fácil de apreender por todos e contém inevitavelmente uma mensagem de ilusória sedução e utopia. O populismo foge como o diabo da cruz do que é racional e objectivo, do pensamento estruturado, seriamente fundamentado, baseado na complexidade do real e das interacções e constrangimentos que pautam o desenvolvimento das sociedades humanas. Basta dizer “tudo é possível” para que largos sectores fiquem maravilhados e acariciem, de forma convicta ou subliminar, os sonhos populistas.

Ora uma mundialização mal desenhada, ou melhor, absolutamente não planeada e enquadrada, que fez de forma rápida e violenta entrar em concorrência as classes médias e populares da Europa e dos Estados Unidos com os trabalhadores de países onde os direitos laborais e sociais não existem ou não são praticados, criou tremendas distorções e levou a um substancial aumento das desigualdades sociais em vários países.

A grande recessão criada pela crise financeira global de 2008/09 veio agravar este estado de coisas, contribuindo durante algum tempo para a pauperização das classes populares e para a tomada de consciência de uma certa precariedade por parte das classes médias. Por isso se reuniram os condimentos para uma vaga populista que abalou o mundo ocidental nos últimos anos.

Ora a epidemia da covid-19 veio pôr à prova dos factos a eficiência e capacidade de gestão de emergências dos líderes populistas e o seu fracasso visível.

Assistimos ao surgimento de um estranho mundo de decisões erráticas e irracionais de governantes, que procuram negar a mais elementar evidência científica, denegrindo e politizando as medidas de prevenção (como o uso de máscara) e, deste modo, contribuindo de forma directa para a catástrofe sanitária e também económico-social nos seus países.

Pelo seu comportamento, os populistas que subiram ao poder com a promessa de restituírem grandeza aos seus países contribuíram objectivamente para a catástrofe humanitária que se desenrola perante os nossos olhos. Através do desprezo pela ciência, da negação obstinada da realidade, do primado das emoções sobre a razão, da sistemática fuga para a frente perante o erro, do cultivo das provocações, da obstinação de narcisismos perversos e, como pano de fundo, do desvio sistemático aos princípios da democracia e do Estado de Direito, arrastaram os seus países para o caos, apesar dos seus imensos recursos económicos.

Em comparação com as desastrosas decisões dos populistas de vários quadrantes, as democracias fiéis aos princípios do Estado de Direito e dotadas de instituições mais resilientes resistiram de forma exemplar à crise sanitária e tudo indica que assistirão a uma retoma económica mais rápida e pujante.

Todavia, e apesar da manifesta falência dos populismos, a crise da covid-19 promete dar-lhes novos argumentos, se os Estados democráticos se revelarem incapazes de evitar o alargamento das desigualdades sociais, um nível de desemprego muito elevado, o desaparecimento de uma grande parte das pequenas e médias empresas, tão importantes para o tecido económico, a desintegração das classes médias e o regresso dos ressentimentos que alimentam os populismos de direita e de esquerda, atiçando os ódios sociais e as violências a que já hoje assistimos (as Jacqueries do século XXI). É, por isso, fundamental que a superioridade moral e prática na gestão de uma crise sem precedentes como esta, por parte dos dirigentes democráticos, leve a que se solidifique o laço de confiança entre a sociedade e as instituições do Estado de Direito democrático e social.

Será?

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