O Teatro Nacional São João numa corrida contra o tempo (e a pandemia)

Instituição retoma o caminho interrompido pela covid-19 regressando aos palcos já em Agosto. Numa temporada 2020/21 atípica, vai acolher 15 estreias e algumas produções internacionais.

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Qui a tué mon père, produção do Théâtre National de Strasbourg, será uma das visitas internacionais da temporada do TNSJ JEAN-LOUIS FERNANDEZ

 Vladimir: Talvez devêssemos recomeçar tudo.

– Estragon: Parece-me fácil.

– Vladimir: O começo é que é difícil.

– Estragon: Pode-se começar de onde se quiser.

Este excerto do diálogo da mais famosa peça de Samuel Beckett já se pode ler em mupis e em ecrãs do Porto, num prenúncio do regresso à actividade do Teatro Nacional São João (TNSJ). Mas o público interessado não vai ter de ficar à espera do dia 7 de Março de 2021 – a data em que o São João estreará uma nova encenação de À Espera de Godot, dirigida pelo romeno-húngaro Gábor Tompa, actual presidente da União de Teatros da Europa (UTE), de que o TNSJ é membro – para voltar à instituição. Até lá, numa corrida contra o tempo (e contra a pandemia), o São João, que – apesar de tudo – continua também a celebrar o centenário do edifício de Marques da Silva na Praça da Batalha, vai apresentar, recalendarizadas, 27 das 29 produções que a covid-19 obrigou a adiar, como esta terça-feira anunciou o presidente da administração, Pedro Sobrado.

“No início deste ano, sabíamos que em 2020 íamos ter um ano excepcional, mas não sabíamos quão excepcional ele iria ser”, gracejou o administrador do TNSJ ao apresentar, ao lado do director artístico Nuno Cardoso, a programação dos próximos oito meses que levarão a instituição até ao encerramento das comemorações do centenário, no final de Março de 2021.

Pela primeira vez nos 25 anos que o São João já leva como teatro nacional, os seus palcos vão estar em cena no mês de Agosto. É um risco calculado pela equipa do teatro, que, apesar de ter garantidas todas as condições de higiene e segurança para a realização dos espectáculos, não esconde alguma “ansiedade” quanto ao regresso do público nesse mês em que o movimento vai em contrapé com o centro da cidade e aponta mais para as praias, notou Pedro Sobrado.

Na agenda estival estão duas produções: a estreia, no Teatro Carlos Alberto (TeCA, dias 6 a 23), de uma nova co-produção com o Teatro da Palmilha Dentada, O Burguês Fidalgo, a partir de Molière, com encenação de Ricardo Alves; e, finalmente, a chegada ao palco do São João da encenação de Nuno Cardoso para um dos grandes clássicos da dramaturgia portuguesa, Castro, de António Ferreira (TNSJ, 20 de Agosto a 12 de Setembro), que teve estreia nacional, ainda antes da pandemia, no Teatro Aveirense, e que no último fim-de-semana “encheu” já os actuais 200 lugares de lotação do teatro em três récitas exclusivas para os profissionais da saúde e da protecção civil.

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O Burguês Fidalgo, pela Palmilha Dentada, marca a reabertura do Teatro Carlos Alberto RICARDO ALVES

Três directores-encenadores

Nesta por demais atípica temporada 2020/21, e além da Castro – que esta quinta-feira chega ao Festival de Almada, prolongando-se depois em digressão nacional até que, em Fevereiro de 2021, irá chegar ao Luxemburgo –, Nuno Cardoso vai regressar a Jean Genet (autor com que se estreou como actor, em As Criadas, recordou esta manhã) para encenar O Balcão (TNSJ, 4 a 21 de Novembro). Com este misto de “comédia erótica, drama metafísico e farsa fúnebre”, o director artístico do TNSJ pretende fechar a sua “trilogia da inauguração” com que vem celebrando o teatro de reportório, de António Ferreira a Georg Büchner (A Morte de Danton).

Os dois outros directores artísticos que deixaram marca funda neste primeiro quarto de século de história do teatro nacional portuense vão também regressar ao palco da Praça da Batalha: Nuno Carinhas, com uma nova co-produção com a Assédio, Comédia de Bastidores, um “divertimento teatral” do dramaturgo britânico Alan Ayckbourn (1 a 11 de Outubro); Ricardo Pais, na senda de Raízes Rurais. Paixões Urbanas, com um novo espectáculo em busca da expressão musical da portugalidade, talvez… Monsanto (3 a 5 de Dezembro), com fado, guitarras e, de novo também, as Adufeiras de Monsanto.

Na lista das 15 estreias anunciadas para a temporada, o TNSJ vai fazer “um périplo por um conjunto de companhias do Porto e do país”, referiu Nuno Cardoso. Alguns exemplos, por ordem cronológica, mesmo se o director artístico fez questão de realçar que a programação de um teatro nacional “não é um conjunto de datas, mas um diálogo em vários sentidos, que não se demite de discutir o mundo”: 20.20, co-produção que assinala os vinte anos da Circolando, com direcção artística de André Braga & Cláudia Figueiredo (TeCA, 3 a 6 de Setembro); A.N.T.Í.G.O.N.A., nova abordagem ao clássico de Sófocles pelo Teatro Experimental do Porto (TEP), com encenação de Gonçalo Amorim (TeCA, 16 a 19 de Setembro); Folle Époque, direcção de Silly Season – Cátia Tomé, Ivo Saraiva e Silva e Ricardo Teixeira (TeCA, 22 a 25 de Outubro); Lorenzaccio, de Alfred Musset, que Rogério de Carvalho encena para o Teatro do Bolhão (23 de Outubro a 14 de Novembro); Língua, criação de Cátia Pinheiro & José Nunes para a Estrutura (TeCA, 5 a 8 de Novembro); e, já em 2021, o Ensemble e o Teatro da Garagem a enfrentarem os clássicos, respectivamente com As Três Irmãs, de Tchékhov, encenação de Carlos Pimenta (TeCA, 7 a 16 de Janeiro), e o Tartufo, de Molière, sob direcção de Carlos J. Pessoa (TeCA, 4 a 14 de Fevereiro).

Novidade na temporada é a associação ao TNSJ da mala voadora, que para aí desloca a sexta edição do projecto Uma Família Inglesa. Serão três criações, entre o TeCA e o Mosteiro de São Bento da Vitória: Festival, que Jorge Andrade encena a partir do livro do neurocientista americano David Eagleman, Sum (TeCA, 25 a 27 de Setembro); Heads Up, experiência terminal com texto e interpretação do britânico Kieran Hurley (MSBV, 29 de Setembro a 1 de Outubro); e Off, a partir de um texto de Chris Thorpe, também sobre o fim, com direcção de Jorge Andrade (TeCA, 2 a 4 de Outubro).

Destaque ainda para três co-produções internacionais, além da já anunciada criação do histórico director artístico da Volksbühne de Berlim, Frank Castorf, adaptando textos de Racine e de Artaud, Bazajet, Considerando o Teatro e a Peste (TNSJ, 17 e 18 de Dezembro). Para a 31.ª edição do Festival Internacional de Marionetas do Porto (FIMP), o TeCA acolhe KAMP (9 e 10 de Outubro), criação da companhia holandesa Hotel Modern que se mantém em cena há década e meia a recordar o horror do Holocausto. Do Brasil, chega Festa de 15 Anos, uma abordagem ao colonialismo, com encenação da dupla Mickaël de Oliveira e Diego Bagagal (TeCA, 10 a 13 de Dezembro). E, no início de 2021, a literatura e o teatro de confrontação do francês Édouard Louis e do actor e encenador Stanislas Nordley expõem-se em Qui a tué mon père, vindo do Teatro Nacional de Estrasburgo (TNSJ, 8 e 9 de Janeiro).

“Pode-se começar de onde se quiser”. Já a partir de Agosto.

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