A geração do milénio e o futuro do mundo

O futuro do mundo pertence aos millennials. A afirmação tem boa ressonância e até pode parecer profunda, mas não passa de um truísmo. Por razões biológicas óbvias, todas as gerações terão, algum dia, o futuro do mundo nas mãos.

1. Geração do milénio. Geração Z. Geração X. Geração Silenciosa. Geração perdida. A terminologia das gerações na análise social e política é cool. Os conceitos classe ou de nação são old-fashioned e podem trazer dissabores aos incautos. Falar em classes sociais, em proletariado e burguesia, em capitalistas e operários, soa a mofo marxista. Falar em nação, outrora uma ideia percebida como progressista, é usar um passadismo que ecoa o discurso da direita radical. Os Estados Unidos da América (EUA) podem estar a perder atracção cultural e política no mundo, mas a moda do ‘geracionalismo’ que lançaram no exterior está bem viva.

Usar uma designação para toda uma geração, que supostamente apresentará um conjunto de características, de traços identificativos e de comportamentos similares, é hoje uma prática comum na imprensa, no discurso político e até em determinados trabalhos académicos. Terá surgido nos EUA durante o século XIX, ou, pelo menos, foi a partir daí que se vulgarizou em inícios do século XX, sobretudo após a I Guerra Mundial.

2. No início era a geração perdida. É a Gertrude Stein (1874-1946), uma quase mítica intelectual avant-garde norte-americana, coleccionadora de arte e mecenas, que se deve a designação ‘geração perdida’. Não foi cunhada para ser uma categoria analítica, muito menos uma terminologia científica rigorosa. Surgiu informalmente nas conversas do seu salão em Paris, nos anos 1920 — provavelmente para irritar alguns dos seus frequentadores —, onde se misturavam nomes como Henri Matisse, Georges Braque e Pablo Picasso com diversos expatriados americanos na Europa/Paris (Sherwood Anderson, Ernest Hemingway e outros). Foi, aliás, num livro deste último — Hemingway — The Sun Also Rises, 1926 (Fiesta — O Sol Nasce Sempre na trad. port, Livros do Brasil, 2019) que a expressão ficou eternizada na literatura norte-americana e depois, pela influência dos EUA no mundo, se vulgarizou também na Europa. Aí pode ler-se a seguinte citação no original em língua inglesa: “You are all a lost generation.’ Gertrude Stein in conversation” (edição da Charles Scribner's Sons acessível na Internet através do Projecto Gutenberg).

3. A referência a uma ‘geração perdida’ tornou-se, por essa via erudita, parte do património cultural americano e europeu e do indivíduo medianamente culto. Mas, para além da sua boa ressonância literária, é esse tipo de designação de uma geração, uma categoria analítica útil em termos sociológico-políticos? Permite-nos, com algum rigor, apreender atitudes, comportamentos, ou outros traços sociais transversais? Ajuda-nos a perceber como se comportam os indivíduos que integram essa geração e possibilita, também, efectuar adequadas comparações com outras gerações ao longo do tempo? Voltaremos a estas importantes questões mais à frente. Para já, em termos demográficos, a definição de gerações permite aglutinar uma massa de indivíduos por grupos etários. Normalmente abarca pessoas nascidas num determinado um intervalo temporal, usualmente de 15 ou 20 anos.

Paralelamente, acontecimentos marcantes são também frequentemente usados para traçar uma (suposta) consciência geracional, sugerindo a ideia de um corte com o passado. O uso social e político da expressão ‘geração perdida’ mostra bem isso. A designação tem implícita uma ruptura associada à I Guerra Mundial. Pretendeu separar aqueles que experimentaram as suas consequências directamente, que tiveram de ir para a carnificina das trincheiras, daqueles que as sentiram apenas indirectamente, de uma forma muito mais atenuada e difusa. A ideia de um sofrimento injusto, concentrado numa única geração, e de uma relação conflitual com as gerações anteriores é, assim, uma temática recorrente do discurso ‘geracionalista’.

4. O recurso à lógica da geração também pode ser efectuado de outras formas. Uma delas é através da identificação de um grupo com um comportamento intrépido, uma geração pré-destinada a actos de um heroísmo salvífico. Os Jovens Turcos (em turco Jöntürkler) são um exemplo desse tipo de ‘geracionalismo’, na época imbuído de nacionalismo, que era também uma ideia cool. Sendo expatriados otomanos/turcos em Paris nos finais do século XIX, viam-se, a si próprios, imbuídos de ideias de progresso, científicas e de modernidade que as gerações anteriores não tinham. Aí preparam as bases da revolução de 1908 contra o sultão otomano Abdülhamid II. Para além de imporem a adopção de uma constituição — mais rigorosamente, a reposição da constituição de 1876, a qual tinha sido suspensa por Abdülhamid II —, iriam salvar o Estado otomano do seu declínio.

Todavia, o resultado não foi nada salvífico, mas desastroso. O triunvirato dos Jovens Turcos que controlou o poder a partir de 1913 — Talât Paşa, Cemal Paşa e Enver Paşa —, acabou por levar a um enorme sofrimento da população otomana. A sua política externa de aventureirismo militar está na origem do colapso e dissolução do Império Otomano após o final da I Guerra Mundial.

5. No lugar da ‘geração perdida’ de há cem anos temos hoje a geração do milénio (os millennials). Na segmentação etária usual enquadram-se aqui os nascidos entre 1981 e 1996 (ver Pew Research Center, Defining generations: Where Millennials end and Generation Z begins). A geração do milénio sucede à geração X (1965-1980), à geração dos baby boomers (1946-1964) e à geração silenciosa (1925-1945). A narrativa usual à volta da geração do milénio oscila entre dois extremos.

Há aqueles que lhe profetizam um futuro salvífico do mundo à ‘jovens turcos’, agora sem militarismos e nacionalismos que já não são cool, pelo menos na Europa. Nessa perspectiva, são uma nova geração progressista destinada a salvar o planeta do apocalipse ecológico e da ganância capitalista, algo que as velhas gerações anteriores não quiseram fazer, ou então não souberam fazer.

E há aqueles que olham para os millennials como os novos desgraçados, uma ‘geração perdida’ do século XXI, apesar de não terem tido de passar pelos campos de batalha e horrores da guerra como Hemingway e a sua geração. (Na realidade, Hemingway também nunca esteve nos campos de batalha como soldado, nem nas trincheiras, apesar de se querer alistar no exército dos EUA, mas participou como voluntário da Cruz Vermelha e condutor de ambulâncias na frente italiana contra o Império Austro-Húngaro.) Nesta última narrativa, os millennials estão atolados, não nas trincheiras, mas de dívidas. São incapazes de acumular riqueza e só têm empregos precários e com escassos benefícios sociais, ao contrário da geração X e dos baby boomers. É necessário notar que ambas as narrativas usam estereótipos simplistas e não são boas formas de análise social e política. Mas o problema de fundo está nas próprias pretensões explicativas de uma abordagem geracional.

6. A narrativa ‘geracionalista’ do qual os millenials são hoje usualmente o centro (começam agora a ficar ‘velhos’ e a ser suplantados pela geração Z, os nascidos após 1996), é problemática pela sua ligeireza teórica-conceptual e pelas distorções de percepção que gera. Pode compreender-se a sua utilidade para efeitos de uma segmentação de marketing, ou de um estudo demográfico. Todavia, numa análise política que se pretenda consistente e rigorosa, o uso do geracionalismo’, pelo menos sem um assumir explícito das suas limitações, merece fundadas reservas.

As gerações são uma realidade social complexa, multifacetada e demasiado heterogénea para encaixarem bem em categorias tão abrangentes. Todavia, a quem recorre a essa terminologia, podem dar a ideia de um rigor analítico assente dados empíricos. E a quem absorve a narrativa podem gerar a ilusão de estar perante uma interessante e abrangente teorização. Mas ao estereotiparem características e comportamentos de indivíduos — apenas por se inserirem numa determinada faixa etária, muitas vezes definida de forma subjectiva —, criam-se generalizações abusivas. Não captam a complexidade da realidade e geram uma falsa sensação de domínio do assunto.

Tais generalizações obscurecem ainda as diferenças de classe, de meio social e económico e empobrecem a análise e o debate político e democrático. Tendem a virar as gerações umas contra as outras com ideias simplistas. Incutem, por exemplo, a ideia de que uma geração beneficia de um bem-estar económico à custa das outras, usualmente os baby boomers à custa dos millennials; ou então, nos baby boomers a ideia de que os millennials são um grupo de privilegiados-falhados, que nasceram na abundância e não estão à altura das gerações anteriores.

7. O futuro do mundo pertence aos millennials. A afirmação tem boa ressonância e até pode parecer profunda, mas não passa de um truísmo. Por razões biológicas óbvias, ligadas ao carácter finito da vida humana, todas as gerações terão, algum dia, o futuro do mundo nas mãos, seja a geração do milénio ou qualquer outra. Para já, pelo menos nos EUA, esse futuro ainda está distante. O actual presidente, Donald Trump, nascido em 1946, é um baby boomer, tal como era o anterior presidente Barack Obama, nascido em 1961. (Há aqui uma questão interessante: sendo Trump e Obama da mesma geração de baby boomers, deveriam ter, se a análise ‘geracionalista’ fosse uma boa grelha de leitura política, traços comuns, mas até agora ainda ninguém conseguiu perceber quais são.) Mas a alternativa a Donald Trump nem sequer é alguém da já ‘velha’ geração X: é alguém da ‘antiquíssima’ geração silenciosa — Joe Biden, nascido em 1942. Por isso, a geração do milénio vai ter de esperar.

Entretanto, talvez uma leitura da obra clássica de John Maynard Keynes, A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, lhe possa ser útil. E isto não só pela razão mais óbvia, que é a dos próximos tempos poderem fazer lembrar demasiado a Grande Depressão dos anos 1930. É que como Keynes dizia “as ideias dos economistas e dos filósofos políticos, quer quando estão certas, quer quando estão erradas, são muito mais poderosas do que normalmente se imagina. Na verdade, o mundo é governado quase exclusivamente por elas. [Aqueles] que se julgam imunes a quaisquer influências intelectuais geralmente são escravos de algum economista já falecido.” (The General Theory of Employment, Interest and Money, Harcourt, 1936, capítulo 24, p. 383). Assim, quanto a ter ideias novas que vão mudar o mundo, a lição de Keynes pode ser também muito útil.

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