Um desbloqueador de conversas chamado covid-19

Demoramo-nos um pouco mais na conversa, não queremos saber apenas do outro como manda o protocolo, mas queremos mesmo saber do outro como exige o coração.

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"É motivo de conversa a covid-19, como antes era a meteorologia" LUSA/Mauricio Dueñas Castañeda

Pouco a pouco, começamos a despedir-nos do teletrabalho e a regressar ao trabalho presencial no local físico de trabalho, onde há uma série de regras a cumprir para que não voltemos a casa. De máscara posta, as conversas são, inevitavelmente, sobre o “novo normal”, expressão que começamos a abominar, tal como o motivo por que andamos de rosto tapado, em pleno calor e com pequenas borbulhinhas a rebentarem na zona do buço e do queixo.

Reencontrados os ainda poucos colegas de trabalho, o tema é a covid-19, como ainda estamos amedrontados com o regresso, embora sejamos, à partida, pessoas, senão esclarecidas, pelo menos mais informadas do que as outras. Demoramo-nos um pouco mais na conversa, não queremos saber apenas do outro como manda o protocolo, mas queremos mesmo saber do outro como exige o coração.

É hora de chamar um táxi e comovo-me quando sou atendida por uma voz conhecida de há duas dezenas de anos. De um lado e do outro da linha, fazemos uma festa por não nos ouvirmos há quase quatro meses, como se de um reencontro de amigas se tratasse. Falamos de como passámos estes meses, como não tem sido fácil para nenhum de nós, o impacto que esta paragem tem na economia e despedimo-nos com beijinhos.

É também uma festa a que o motorista de táxi me faz. Abro a porta do carro e, enquanto coloco a máscara, ouço-o gritar: “Bom dia! Como está? Há tanto tempo!” Ao que respondo à cara conhecida por detrás da máscara cirúrgica e de um acrílico que separa os bancos da frente dos detrás: “É verdade, é verdade! Que bom vê-lo!” E continuamos a falar sobre este vírus que nos obrigou a ficar em casa. Há um medo do futuro da profissão, confessa o motorista, mas também a esperança de que além dos jornalistas também os turistas regressem.

É com alegria que revejo colegas de outros órgãos de comunicação e assessores que dão uma aparente normalidade ao regresso. “Não podemos dar um beijinho? Ah... e um abraço?”, pergunta alguém. De máscara posta, cumprimentamo-nos com cotoveladas amigas e gargalhadas por estarmos nestes preparos. Os sorrisos vêem-se depois, quando guardamos distância uns dos outros, higienizamos as mãos, tiramos as máscaras e começamos a trabalhar. As máscaras regressam ao seu posto quando são horas das despedidas.

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Miguel Madeira

É com confiança que à porta de uma entrevistada saco do álcool-gel, esfrego bem as mãos enquanto pergunto, por detrás da máscara, se é preciso descalçar-me para entrar. Que não, que já ultrapassou todos esses medos. Sentamo-nos no mesmo sofá, com a distância devida para tirar a máscara. “Abraço os meus amigos, não deixei de os abraçar”, confessa. Eu também, mas só os saudáveis, e rimo-nos.

É com ternura que janto com uma amiga, fisicamente e não sentada em frente de um ecrã. Não nos beijamos nem abraçamos porque já apanhou um susto durante a quarentena e não quer voltar a repeti-lo. Fica apreensiva quando começo a ficar com o nariz congestionado e me assoo, quando a minha voz começa a sair nasalada e quando dou o primeiro espirro. “É o ar condicionado”, justifico com um ar calmo, para a sossegar.

É motivo de conversa a covid-19, como antes era a meteorologia. Agora em vez de comentarmos se vai chover no fim-de-semana ou se este calor está aí para durar, discutimos a utilidade da máscara, se o que mais nos assusta é o espirro ou a tosse, os benefícios e malefícios do teletrabalho e da telescola, se o vírus deu cabo da economia e vai dar cabo de nós, se seremos melhores ou piores pessoas depois deste desafio. Em suma, descobrimos que a covid-19 é um bom desbloqueador de conversa.

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