Medo de si próprio e do outro

Se já existiam dificuldades relacionais, connosco próprios e os outros, agora foram exponenciadas pela intensa convivência durante o confinamento, pelas regras de distanciamento e pela incerteza com o futuro. Estamos mais fechados.

O vírus tem costas largas. De repente é como se todas as mutações que temos vivenciado nos últimos meses, na economia, sociedade, política, ambiente, tecnologia, comportamentos ou cultura, se devessem à pandemia. Em alguns casos o vírus permitiu, validou ou acelerou mudanças, que em certos contextos ganharam contornos que poderão ser inesperados, mas quase tudo o que tem acontecido resulta de disposições que estavam já implementadas ou em curso.

Nos últimos meses muito se tem falado do isolamento e distanciamento físico. Fazemo-lo obviamente por razões de saúde pública, mas todos os sintomas e efeitos de que falamos hoje, da solidão ao medo do outro, já lá estavam. No caso da vida privada, existem condicionantes socioeconómicas que ajudam a perceber a privação, solidão e ausência de vínculos na vida contemporânea das grandes cidades, principalmente entre os mais vulneráveis. Mas mesmo entre os grupos sociais mais privilegiados abundam os relatos de indivíduos que, de repente, se confrontaram com zonas internas que nem sequer conheciam, ou encontraram nos que lhes eram mais próximos, familiares ou amigos, uns desconhecidos.

O que dá que pensar. É que se, por um lado, ainda parece existir, principalmente entre gerações mais velhas, estigmas em relação à saúde mental, ou à problematização das emoções, entre as novas gerações, popularizaram-se um sem fim de tratamentos e terapias que prometem orientação psicológica ou espiritual de todas as formas e feitios. Nada contra. Mas fica a ideia que muitas delas poderão ser praticadas à superfície, acabando por se criar a ideia que é possível solidificarmo-nos interiormente sem lidar com inevitáveis conflitos, que fazem parte da condição humana e que devem ser compreendidos para melhor lidarmos com as causas.

Se já existiam dificuldades relacionais, connosco próprios e com os outros, agora foram exponenciadas pela intensa convivência durante o confinamento, pelas regras de distanciamento e pela incerteza com o futuro, a insegurança com o emprego e todas as alterações económicas e sociais. Estamos mais fechados. Com mais receio da proximidade e partilha da intimidade. E mais expostos a depressões, reclusões, ansiedades e desgastes relacionais.

Na vida colectiva ou social é o mesmo. Tendemos a confundir causas e efeitos. Os desequilíbrios socioeconómicos avolumam-se, as expectativas das populações por menor desigualdade, e mais dignidade, solidariedade e respeito mútuo vão sendo defraudadas, e ressurgem sentimentos nacionalistas e estigmatizações raciais, de género, classe social e outras. Rejeita-se a pluralidade, prevalece a mentalidade paranóica em relação a tudo o que sai do nosso círculo, constroem-se bodes expiatórios, rejeita-se a mestiçagem, prevalece uma cultura da pureza ligada à desconfiança do que não se conhece e que nos pode colocar em causa, seja um imigrante, ou a simples actividade crítica de alguém ou o trabalho criativo de um qualquer artista.

É tão necessário fortalecer a coesão colectiva, a adesão ao bem comum, e a democracia, como é preciso socializar e desejar conhecer o mundo do outro. Vivemos imersos em informação, mas isso não chega, se na maior parte dos casos nos surge descontextualizada, sendo necessário interconectá-la para produzir significado e sentidos, ou seja, conhecimento, que pode ser utilizado para nos compreendermos melhor, a nós e aos outros, dialogando com a vida, seja a privada ou colectiva. Nada é mais nobre. Nada é mais sábio.

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