A poesia e a mudança alimentam o Concerto de Filipe Raposo

No âmbito do 15.º aniversário do Teatro das Figuras, o músico estreia este sábado, em Faro, o seu primeiro Concerto para Piano e Orquestra, inspirado por versos de José Tolentino Mendonça.

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ANTÓNIO MARINHO DA SILVA

Em resposta ao convite de Rui Pinheiro, maestro titular da Orquestra Clássica do Sul, para ser o compositor residente em 2020, Filipe Raposo começou a trabalhar na escrita do seu primeiro Concerto para Piano e Orquestra. Foi durante o período em que procurava fixar uma estrutura formal para a peça em que os olhos bateram num curto poema de José Tolentino Mendonça e, num repente, tudo se tornou claro. “Em silêncio o rochedo/ vê chegar e partir/ as estações”. Diante desta “síntese poética sobre a passagem da vida e sobre a observação dessa passagem e da brevidade”, o músico começou então a aprofundar a sua pesquisa para a obra que estreará este sábado, na rampa do Teatro das Figuras, em Faro – apresentação integrada no 15.º aniversário da sala.

Tendo partido para a composição do concerto rodeado por sentimentos de perda e de mudança, Filipe Raposo foi apanhado de surpresa e viu-se a compor em casa, acompanhado pela gigantesca transformação no quotidiano operada pela resposta de emergência à propagação do novo coronavírus. “Essa grande mudança acabou por acontecer e por ser também objecto de grande introspecção quando, de repente, não saía à rua e trabalhava nesta peça em confinamento”, diz ao PÚBLICO. “O piano é um intensificador de muitas emoções que a própria conjuntura foi criando.”

O efeito pandémico, no entanto, far-se-ia sentir não tanto na obra em si mas no súbito e provisório desaparecimento de uma deadline, “um impulso também importante na criação”, reconhece. Ao longo de quatro meses, Filipe Raposo dedicou-se à composição destes 30 minutos de música, carregando consigo obras de referência pessoal como “o célebre concerto de Ravel, os concertos de Bach e de Brahms, mas também mais contemporâneos, como o de Ligeti e o de Lutoslawski”. “São como faróis dentro da escrita pianística para orquestra que levamos connosco. Escusado será dizer que estes faróis exercem também um factor psicológico tramado. Mas, depois, aceitamos que estamos aos ombros de gigantes e felizmente temos partituras, podemos estudá-los, perceber o pensamento deles. Foi importante descobrir como ia relaxar, de forma a que aquilo que queria dizer aparecesse.”

E aquilo que apareceu, após a epifania diante das palavras de Tolentino Mendonça, foi “uma carga poética que o concerto tem e que está necessariamente presente nesta escrita enquanto tradução do indizível, através dos sons, deste presente que estava a viver”. Tratando-se de Filipe Raposo, músico que se tem distinguido tanto no jazz e na música improvisada quanto no trabalho com a música popular e com a música para cinema, deixando que a sua formação clássica contamine amiúde o discurso pianístico, o seu Concerto para Piano e Orquestra cruza, sem espanto, todas estas sonoridades. “É uma escrita contemporânea”, descreve, “mas, como me movimento no jazz e na música improvisada, senti também a necessidade de pensar formalmente como é que essas áreas podiam entrar numa escrita que é uma partitura fechada para orquestra”. Essa resposta acabou por ser facilitada pelo facto de, neste diálogo entre orquestra e instrumento solista, Filipe Raposo assumir o papel de solista na estreia e nas datas da digressão que se seguirá.

“Escrevi os momentos solísticos exactamente como podem ser tocados, um dia mais tarde, por outro pianista”, explica. “Mas optei, nos momentos em que fico sozinho, por cadências totalmente improvisadas. À semelhança do que Bach, Mozart ou Beethoven faziam. Eles eram autores dos concertos e tinham aquele momento de liberdade e improvisação, sempre fundamentado no conjunto.”

Inspirado tanto por Tolentino Mendonça como pela estrutura clássica tripartida em três andamentos, Filipe Raposo começaria a escrita do concerto pelo segundo andamento, inspirado pelo segundo andamento do Concerto de Ravel, aquele que é, para si, “um dos momentos máximos da literatura para piano e orquestra”. “Ravel passou a vida toda a rearranjar o concerto e o seu objectivo principal era aprimorar. Este segundo andamento é imaculado, uma pérola. Procurei também essa beleza neste momento do ‘chegar a partir’, presente na ideia de separação, da perda daqueles que nos são queridos, na aceitação dessa partida.”

É o andamento mais etéreo de um concerto que tanto se aproxima do jazz modal como de uma estrutura rítmica mais popular e telúrica, com vários momentos de irrupção de “um caos momentâneo para se chegar a uma ordem”. Em vários desses momentos, a proximidade de Filipe Raposo ao cinema acaba também por se revelar através de pequenas alusões ao compositor Bernard Herrmann, reconhecido sobretudo pela música que escreveu para filmes de Alfred Hitchcock. “O primeiro andamento”, reconhece o músico, “termina com uma homenagem ao cinema, com o acorde que o Herrmann cunhou” e que facilmente recuperamos da banda sonora de Vertigo – A Mulher que Viveu Duas Vezes. É “apenas” mais um dos heróis que Filipe carrega consigo o tempo todo e que se manifesta em cada uma das suas criações.

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