Conseguirá Merkel evitar a Grande Fragmentação da UE?

O perigo de os Estados agirem isoladamente na lógica de my country first é inegável e aprofundará divergências e assimetrias. A sustentabilidade da sociedade, da economia e do emprego não podem esperar mais tempo. A integração europeia também não.

Tarda a operacionalização da resposta europeia à pandemia, dita de Recovery Plan for Europe. Recordo que o Eurogrupo, em 9.04.2020, decidiu um pacote de apoio aos Estados, empresas e famílias com uma magnitude que o seu presidente, Mário Centeno, simplificou dizendo “estamos a falar de 12 zeros para o plano de recuperação”, e que o Conselho Europeu, de 23.04.2020, fixou em 540 milhares de milhões de euros, apelando à operacionalização do pacote de apoio até 1.06.2020, assim entreabrindo um horizonte de esperança.

É por isso compreensível que em 19.06.2020, o Presidente Michel tenha bocejado a sua desesperação ao afirmar: “Estou totalmente comprometido em iniciar imediatamente negociações reais com os Estados-membros”.

Esta delonga é surreal, perigosa, e ameaça a fragmentação da UE e da zona euro. A circunstância é subversiva e anormal. Predomina um grau anormalmente elevado de risco e de incerteza nos dados e nas previsões económicas sobre o pós-2020, que excede aquele que é próprio da ciência económica. A retoma dos setores e actividades será gradual e assimétrica, sendo desconhecido o ritmo da aderência dos consumidores, e o tempo que será necessário até que se entre num patamar de sociabilidade com um mínimo de normalidade.

Em paralelo, a vivência do quotidiano confirma a progressiva difusão de um sentimento de inquietude nas populações e de um medo individual e coletivo de ser infetado que poderá vir a inibir espontaneamente a vontade de circulação de pessoas, em especial viajar para o estrangeiro, e as decisões de consumo durante um período temporal expressivo, muito para além do calendário oficial de desconfinamento. Alertando a Organização Mundial de Saúde em 19.06.2020 para que o “mundo está numa nova e perigosa fase (...). Apelamos a todos os países e pessoas a que exerçam extrema vigilância”.

O BCE, depois do desconchavo da intervenção de Lagarde em 12.03.2020, emendou a mão em 18.03.2020 com a criação do programa de emergência de compra de ativos no valor de 750 mil milhões, dito de bazuca, saudada com o alívio do chega e sobra. A verdade é que em 4.06.2020 foi reforçada em 600 mil milhões de euros. Na política global, o unilateralismo faz caminho. Encorpam-se novos riscos ao são convívio entre povos, como sejam as alterações climáticas, “o vandalismo cultural e cognitivo que agora campeia” — dito na síntese preciosa de José Cutileiro —, os métodos de destabilização da organização social da qual depende o nosso modo de vida, de que são exemplos a weaponisation of information, ciberataques, ou o uso indevido de inteligência artificial e de espionagem ilegal.

Tal como afirmou Merkel em 26.06.2020, o tom do discurso internacional é brusco e o multilateralismo não está na ordem do dia. Tudo isto aumenta o contexto de incerteza e imprevisibilidade, e adensa os perigos de reabilitação de fronteiras nacionais e de restrições aos movimentos internacionais de capitais existentes antes da pandemia que antevi nos artigos A Reguada de Schäuble e C'est la vie ou estranha forma de vida?, publicados neste jornal.

É neste contexto que se iniciou a Presidência Alemã da UE em 1.07.2020, que se propôs alcançar um rápido acordo no Recovery Fund e no orçamento da UE para 2021-2017. Ou seja, no sine qua non da recuperação. Desde março que desfila uma pletora de programas de resposta à pandemia, em alguns casos duplicados, cuja compreensão se afigura labírintica, incluindo para membros de governos. Abunda jargão “flexible State Aid framework”, “escape clause of the Stability and Growth Pact”, “Joint Roadmap for Recovery”, “Multiannual Financial Framework”, “Recovery Fund”, “Recovery and Resilience Facility”, “Pandemic Crisis Support”, “Pandemic Response Plan” a que acresce outro, incluindo os dos meios criados pelos BCE e EBI.

Destaco o programa designado de “Next Generation EU”, sobre o qual tenho feito notar que prevê medidas fiscais que evidenciam que o Conselho e o Eurogrupo se concentraram no que entendem dever ser “taxado”, i.e., o digital e o carbono, sem que ninguém pareça preocupar-se com o modo como vai funcionar, em especial sobre a possibilidade de estar pronto em tempo útil ou de ser eficaz. Isto deveria merecer atenção séria, posto que o acervo da fiscalidade internacional ensina que a tributação da economia digital é obra ciclópica. E que só pode lograr-se com base num consenso internacional, sob pena de se criarem problemas maiores do que aqueles que se ambicionam resolver, como confirma a retirada dos EUA destas negociações ocorrida este mês, assim como a intenção anunciada de criar retaliações. Acresce que a aplicação de taxas sobre o carbono a produtos de países terceiros importados para o mercado interno ameaça desencadear uma onda de retaliação à escala global, o que entreabre no horizonte uma guerra comercial que prejudicaria em muito a recuperação que se pretende e que, a suceder, prejudicará em especial as PME portuguesas.

A reforma da tributação da economia digital e do carbono são indispensáveis. Porém, deveriam lograr-se num quadro mais conciliador, sem a pressão asfixiante para financiar a recuperação da situação criada pela pandemia.

Venho advogando que deve optar-se no imediato por soluções fiscais passíveis de operacionalização céleres e eficazes na obtenção de apoio popular e de receitas, de que aponto como exemplos: a) um imposto pessoal europeu sobre ativos estruturado na capacidade contributiva, revelada através do património, em articulação com o reforço dos mecanismos de controlo do beneficiário efetivo e do dinheiro digital, dos novos meios de pagamento, incluindo criptomoedas, e dos cripto ativos; b) a criação do IVA do setor financeiro; c) o reforço da luta contra a contrafação, o branqueamento de capitais, a fraude e a evasão fiscal, incluindo através da utilização de drones para rastreio de factores de incidência de natureza imobiliária, à semelhança do que já fazem a Austrália e outros estados.

Este pacote de soluções teria ainda o mérito de repor integridade nas receitas tributárias, de religar o projeto europeu às aspirações dos cidadãos-contribuintes em benefício da licença social da UE, ao afirmar que ninguém se pode apresentar a fruir sem contribuir na medida da sua capacidade contributiva. Favoreceria ainda a coesão social, o crescimento económico, a sã concorrência e os fluxos financeiros sustentáveis, a inovação e o esforço individual e empresarial.

Outro problema crucial para a recuperação, e que atinge todo o mercado único, é o das rendas não-habitacionais, cujas implicações são sistémicas, ameaçando criar uma nova vaga de crise económica e financeira na zona euro. Isto é porque mesmo o melhor cenário de recuperação não permitirá à grande parte dos agentes económicos obter recursos suficientes para neutralizar o acumulado de perdas dos períodos de quebra de actividade.

No plano empresarial, tal desencadeia falências em cascata, o que provocará um aumento do desemprego, uma quebra da receita fiscal e desmantelamento da estrutura produtiva, incluindo a de nova geração. Tais efeitos, por natureza, transmitem uma trajetória de degradação às finanças públicas e ao sistema bancário da zona euro. Nas finanças públicas porque a conjugação da diminuição da receita fiscal com o aumento da despesa inerente aos subsídios de desemprego, além de outros efeitos que por economia de tempo não especificarei, serve de correia de transmissão ao preço da dívida pública e à resiliência do sistema bancário, na medida em que as empresas e as pessoas que perdem emprego perdem também o rendimento, e devido a isso não podem pagar os empréstimos, assim deitando também a perder muito do trabalho que os bancos vinham fazendo em matéria de imparidades e de non-performing loans, e ameaçando a sua capacidade para financiar a retoma.

A tudo isto acresce o impacto no plano judicial, posto que o número de ações judiciais poderá ser de tal ordem de grandeza que os tribunais não têm capacidade de resposta. Eclodindo ainda no plano político nacional várias questões, entre elas a injustiça de o grupo social dos senhorios ficar excluído dos sacrifícios da pandemia, ou da tributação autónoma à taxa especial de IRS em 28% (ou outra inferior em função da duração do contrato), ou à taxa de 21% ou 17% IRC, consoante o caso, em contraste com a tributação dos rendimentos empresariais do empresário/inquilino, que lhe paga a renda, que no limite podem ficar sujeitos à taxa máxima do IRS (48%).

Ciente, a Suíça, um dos Estados mais liberais e pro-rule of law, colocou em 1.07.2020 em consulta pública um projeto de lei que visa uma fórmula de repartição do prejuízo entre senhorios e inquilinos de 60%/40% nos termos que prevê, e que não se limita aos centros comerciais (como se pode ler aqui).

O que pensa a UE fazer sobre o risco sistémico que apontei? Deixa o assunto nas mãos de cada Estado?

O perigo de os Estados agirem isoladamente na lógica de my country first é inegável e aprofundará divergências e assimetrias. A sustentabilidade da sociedade, da economia e do emprego não podem esperar mais tempo. A integração europeia também não. Muita razão tem o Comissário Gentiloni ao afirmar em 20.05.2020 que “temos que assegurar que esta crise não será lembrada como a Grande Fragmentação”.

A história desafiou assim a Presidência Alemã a perpetuar no panteão dos grandes que não há impossíveis à UE e mostra porque é que o Presidente Obama optou por dedicar a Merkel o seu último telefonema para um líder estrangeiro.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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