Qual é a cor das ditaduras?

O mundo que se conta a partir do que se diz.

“Uma ditadura deste extremismo não pode durar no mundo de hoje, é impossível. Temos de persistir, o tempo está do nosso lado. Estamos do lado certo da História.” Jimmy Lai, magnata dos media de Hong Kong

“Hong Kong está morta”

Jimmy Lai chegou pobre a Hong Kong, aos 12 anos, e sentiu que ali poderia sonhar com um grande futuro. Hoje, quase um quarto de século depois de ter fundado o tablóide Apple Daily, é um dos grandes magnatas chineses dos media e um dos rostos mais conhecidos do movimento pró-democracia no território (agora menos) autónomo do Sul da China. Num momento em que a nova lei da segurança nacional imposta por Pequim entra em vigor na antiga colónia britânica, que deveria manter até 2047 o seu estatuto especial de relativa independência, Lai deu uma entrevista à AP a dizer que vai continuar a lutar, mesmo correndo o risco de ser preso — “Se tiver de ir para a prisão, não me importo, não quero saber.” Não duvida de que “Hong Kong está morta”, de que a situação “é pior que o pior cenário imaginado” e que levará muitas pessoas, assustadas, a deixar o território. Ele não, ele fica e promete continuar a lutar. “Temos de ver quantos irão sobrar no lado dos lutadores” e esses terão de se “erguer e ser a espinha dorsal da integridade do movimento e da integridade da Justiça de Hong Kong”. Vai ser uma sociedade muito diferente daqui em adiante, garante Jimmy Lai, que não sabe se as pessoas de Hong Kong, “habituadas à liberdade e ao Estado de direito, serão capazes de se adaptar”.

Recuperar o amarelo

A luta pelo amarelo tem sido uma essência das últimas décadas da História do Brasil. Já foi da ditadura militar até a campanha para as “Diretas Já” recuperar a cor para o lado democrático, antes de a direita voltar a sequestrá-la para golpear a democracia, derrubar uma Presidente com falsos pretextos e eleger um admirador da ditadura como chefe de Estado. Essa luta permanente pela cor que, junto com o verde, identifica imediatamente o Brasil (principalmente desde que a selecção de futebol passou a vestir-se de amarelo, num exorcismo necessário depois da dor do maracanaço de 1950), voltou a intensificar-se numa altura em que a inépcia do Governo no combate à pandemia condenou muitos milhares a morrer e fez cair a pique a popularidade do Presidente Jair Bolsonaro. Em Maio surgiu o movimento Estamos Juntos que procura resgatar o amarelo para o lado dos defensores da democracia. “Quando os bolsonaristas se apropriam desses símbolos, conseguem reforçar uma narrativa falsa de que eles são os verdadeiros brasileiros”, disse à Folha de S. Paulo o escritor Antonio Prata, um dos fundadores. O manifesto do movimento, onde se refere a vontade de “combater o ódio e a apatia com afecto, informação, união e esperança”, já contava esta semana com mais de 283 mil assinaturas.

Eleições à bruta

Desde 18 de Junho já foram detidos mais de 200 membros da sociedade civil. Se recuarmos a Maio, pelo menos meio milhar de activistas foram parar aos calabouços por exigirem que sejam respeitados os direitos, liberdades e garantias na Bielorrússia. O país tem eleições a 9 de Agosto e o Presidente, Alexander Lukashenko, está empenhado em cumprir o sexto mandato, não querendo deixar nada ao acaso: face à vaga opositora a que a Bielorrússia não estava habituada, o Governo reagiu “de forma brutal”, reprimindo protestos pacíficos, denuncia Marie Struthers, directora da Amnistia Internacional (AI) para a Europa Oriental e Ásia Central. As Nações Unidas protestaram contra a repressão e as detenções em massa — incluindo a de Viktor Babariko, o mais sério rival político do homem que manda no país há um quarto de século —, a AI declarou os detidos como prisioneiros de consciência, algo que não afecta o sono do Presidente daquela que é considerada como a “última ditadura europeia”. Lukashenko, único deputado do Parlamento bielorrusso que em 1991 votou contra a dissolução da União Soviética, mudou a Constituição para poder ficar indefinidamente no poder e não se importa de ser um pária no Ocidente porque tem sempre o apoio da Rússia para onde se virar.

Corações resistentes

Em 1969, na Argentina, a ditadura do general Juan Carlos Onganía (que havia derrubado três anos antes o Governo democraticamente eleito de Arturo Illia) tentava abafar através da violência a agitação popular que acabaria por ditar o seu fim, um ano depois, num novo golpe militar. Um cantor e compositor de música popular argentina, inspirado pelo movimento do Novo Cancioneiro (defensor da modernidade na criação da música tradicional), fazia uma canção que acabaria por se tornar com o tempo um “hino latino-americano”, assim considerado pela UNESCO em 1990. Canción con todos, com letra de Armando Tejada Gómez, tornou-se mais conhecida na voz de Mercedes Sosa e foi essa interpretação que o então Presidente do Equador, Rafael Correa, propôs em 2014 para hino da União de Nações Sul-Americanas. Em Maio, vários cantores e músicos latino-americanos participaram numa versão pandémica do tema, dessas que dividem o ecrã com muitos a cantar em suas casas — César Isella canta os primeiros versos, sentado no sofá de sua casa. Esta semana, o cantor e compositor, de 81 anos, voltou a ser internado por causa da cardiopatia grave de que padece desde 2012, mas apesar do frágil estado de saúde foi enviado para casa. O seu coração ainda resiste, como a sua canção.

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