Vou olhar o nosso mar de frente com mais tempo

A leitora Patrícia Caeiros, médica a cumprir o primeiro ano de internato, saiu de Lisboa para ir viver e trabalhar num lugar “bonito”. Tem saudades das viagens pelo mundo, mas este ano fica em Portugal.

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Patrícia Caeiros

Olho o mar de frente, as praias que se estendem, o horizonte. Respiro a brisa que me chega desde lá de baixo com o cheiro a maresia. E começo a caminhar. Não há ninguém à minha volta. Nem na estrada de terra que se abre a meus pés. Cumpro com as regras que são impostas pela pandemia em que vivemos. E até vou sozinha.

Tenho saudades de meter a mochila às costas e partir, e quem me conhece sabe que sou de seguir sem planos, às vezes a improvisar a solo, com o mundo lá fora à espera para ser descoberto pela primeira vez pelos meus olhos. Falta-me a liberdade que as viagens representam na minha vida: um livro com a caneta à mão para ser escrito, com as possibilidades a serem infinitas todos os dias, e a cada decisão que tomo. Este ano talvez fosse a Indonésia. Ou as Filipinas. O Canadá também estaria na ideia. Com Portugal pelo meio, nos fins-de-semana, que muitos agora são de descanso. Finalmente.

Demorou tanto tempo a chegar aqui, mas, por fim, comecei a trabalhar enquanto médica, e sou interna de formação geral onde os médicos fazem falta. Saí de Lisboa. Não que não a considere uma das cidades mais bonitas do mundo, mas cansei-me do frenesim dos grandes centros, e vim à procura de um primeiro ano de internato num lugar onde a vida fora do hospital me trouxesse qualidade de vida. E assim foi, e assim tem sido. E assim continuará a ser, porque, este ano, é por cá que fico.

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E quão bonito é este lugar em que vivo. Em que vivemos, aliás. Foi (e tem sido) a minha salvação quando a pandemia se instalou em Portugal, quando as restrições tomaram (e têm tomado) conta do nosso dia-a-dia, e quando tive medo de ser médica pela possibilidade de me infectar no meu local de trabalho. Lembro-me das vezes em que chorei, por sentir os dias a assoberbarem-me os ombros. Não sabia ao certo com o que é que estava a lidar, e os artigos científicos saíam (e continuam a sair) uns atrás dos outros, e em catadupa. Estar a par da informação era uma pressão gigante, e chegava a casa depois de um dia de trabalho para ficar longas horas a actualizar-me (e ainda fico, leia-se).

Por isso, viver junto ao mar, e longe das grandes cidades, foi o alívio que encontrei na minha vida para apaziguar a distância que vivi longe da minha família, e dos que amo, por ser um risco tão grande para eles pela profissão que escolhi a seguir à Medicina Veterinária. Agora, aos poucos e poucos, adapto-me, e adaptamo-nos, às novas condições de vida, e ao novo normal (se é que alguma vez se poderá chamar de normal ao que vivemos). Não sei se terei muito tempo livre para gozar os dias, ainda que já os tenha colocado no calendário, porque tenho que estar disponível para responder a um eventual aumento da incidência da covid-19, se eu for precisa para assegurar o normal funcionamento dos serviços médicos.

(E caso se tenham esquecido, deixem-me que vos lembro, cada um de nós tem responsabilidade perante o próximo na gestão desta doença pandémica. Se ainda não a assumiram, façam-no. E com urgência.)

Mas seja o que for aquilo que o futuro me reserva, cumpro com as recomendações da autoridade de saúde, e, agora, começo a ir por aí, devagar, a aproveitar mais este canto onde vivemos. Tenho muitos lugares ainda a percorrer mundo fora, mas, garanto-vos, daquilo que eu já vi, não tenho a mínima dúvida de que Portugal é um dos sítios mais bonitos do mundo. Por isso, e tendo em conta o contexto em que todos vivemos, este ano, é por cá que fico. Vou aproveitar o tempo para olhar o que é nosso com mais tempo, e com olhos que se demoram ainda mais nas ruas das aldeias, nos parques naturais, nas areias ainda selvagens à beira-mar. Vou olhar o nosso mar de frente, as praias que se estendem, o horizonte. E vou respirar a brisa que soprará devagar, sabendo com a maior certeza que não escolheria outro lugar no planeta para estar a viver este período que nos virou a vida do avesso, que não este em que eu vivo hoje.

Patrícia Caeiros

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