Porto, mobilidade e pandemia

No que diz respeito a urbanismo e mobilidade, o Porto está ainda nos anos 80, e conceitos como poluição atmosférica, sonora ou mesmo sedentarismo não dizem nada ao habitante “de bem”, que gosta de passear o seu carro alemão ao domingo, e a uma classe política para qual a perspectiva de se deslocar de transportes públicos é uma realidade distante.

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A ciclovia da Avenida da Boavista, no Porto, vai ser reformulada Paulo Pimenta

Desde 2017, faço parte do grupo de privilegiados que habita o coração da cidade do Porto. Privilegiados, sim, porque os preços praticados aliados à banalização do alojamento local inviabilizam a fixação de grande parte da população, isto para já não falar de outros processos de gentrificação que se têm verificado e que há anos assolam os jornais, sem que grande coisa seja feita para contrariar esta tendência.

Apesar de me considerar privilegiada, existe nesta decisão uma bela porção de loucura. Loucura, sim, porque as constantes festas e arraiais do Sr. Rui Moreira tornam esta cidade numa “Disneyland festivaleira” onde é mais provável encontrar grupos de jovens a tocar bombos às duas da manhã (sim, isto acontece) do que uma criança a caminho da escola.

Isto dito, queria falar-vos de mobilidade. Na minha condição privilegiada, desloco-me a pé pela cidade, visto que, admitamos, comparada com cidades como Paris ou Berlim, o Porto é do tamanho de uma ervilha, e apesar de para o português médio esta afirmação possa parecer uma aberração, a forma mais viável de me deslocar no centro do Porto, já para não falar de ecologia, é para já, mesmo a pé.

Associada aos processos de gentrificação da cidade, tenho assistido passivamente ao crescente tráfego automóvel, e problemas de aparcamento daí resultantes, que foi para muitos a única maneira de compatibilizar o habitar na periferia e concelhos limítrofes, onde as rendas praticadas se aproximam mais da realidade portuguesa, e as deslocações diárias para os trabalhos cuja oferta ainda se concentra no centro citadino.

Aos menos favorecidos resta pouco mais do que duas linhas de metro, e autocarros sobredimensionados para a dimensão real das nossas ruas que, a custo e entre buzinadelas, conseguem manobrar em ruas consideradas largas como a D. Manuel II — isto para não falar de vias como a Mártires da Pátria. Timidamente apareciam uns loucos (que só podem ser estrangeiros) a tentar mover-se de bicicleta ou trotineta, sem que para tal existisse qualquer infra-estrutura no local (e, por favor, não me façam falar da ciclovia “interrompida” da Constituição ou do local para encostar o carro que é a ciclovia da Avenida da Boavista).

Simultaneamente, assisto incrédula a projectos como a requalificação da Avenida Fernão de Magalhães, que pretende ser “o novo conceito de mobilidade na cidade”, citando o site da Câmara do Porto, onde não se avista uma pista dedicada à ciclovia, ou mesmo às famosas trotinetas que a câmara recentemente implantou em pontos-chave da cidade. Queria deixar aqui uma mensagem muito simples: o motivo principal pelo qual as pessoas não se deslocam nestes meios alternativos não é a falta de poder financeiro para comprar uma bicicleta ou uma trotineta, mas sim o amor à vida. E enquanto não existirem percursos completos e exclusivos para estes transportes, complementados por acções de sensibilização a condutores de automóveis e peões, por um lado, e também acções punitivas a quem, nomeadamente estacione em ciclovias, os seus utentes vão manter-se residuais.

Claro que isto é uma utopia e existem especialistas e estudiosos muito mais qualificados para falar destes assuntos e que aconselho os interessados a lerem. De todo o modo, na minha condição de habitante desta cidade, sinto-me habilitada à minha opinião, que sumariamente partilho: no que diz respeito a urbanismo e mobilidade, o Porto está ainda nos anos 80, e conceitos como poluição atmosférica, sonora ou mesmo sedentarismo não dizem nada ao habitante “de bem”, que gosta de passear o seu carro alemão ao domingo, e a uma classe política para qual a perspectiva de se deslocar de transportes públicos é uma realidade distante.

No meio disto tudo, andava eu já há meses a tentar construir a coragem de começar a usar máscara (aquela coisa que, até há uns meses, era só para cidades poluídas das Ásia) para me proteger da nuvem negra de diesel que castiga os pulmões dos habitantes das nossas cidades, quando sou surpreendida pela pandemia.

Pandemia que, ao esvaziar as cidades do turismo e a tornar uma aventura o uso dos transportes colectivos, veio expor a inacção e incapacidade de pensar uma mobilidade individual alternativa. Para os que justificam falta de visão com custos, fazer uma ciclovia pouco mais implica do que uma linha pintada no chão e um plano. Ou então, se o problema não é falta de visão para a cidade, qual é a nossa desculpa?
 

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