O astronauta na Terra

A realidade é essa, o astronauta já existe na Terra, e somos todos nós. Não no sentido literal da palavra (viajantes espaciais), mas no sentido em que dependemos inteiramente de tecnologia para sobreviver num ambiente inóspito.

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Edwin “Buzz” Aldrin, astronauta da missão Apolo 11, fotografou a bota e a pegada que deixou em solo lunar a 20 de Julho de 1969. LUSA/EDWIN ALDRIN/NASA HANDOUT

É senso comum pensar no planeta Terra como um local hospitaleiro, aprazível e particularmente adaptado para nele sobrevivermos. Assim como é senso comum pensar na Lua ou em Marte como locais inóspitos e hostis, fundamentalmente ameaçadores a qualquer humano que lá se encontre.

No entanto, esta é uma noção enganadora, pois reveste-se de um importante viés exposto por David Deutsch no seu livro O Início do Infinito (2013), e que tentarei desmontar nos parágrafos seguintes:

Consideremos os primórdios da espécie humana, no berço da humanidade que foi o Vale do Rift, na costa Este de África. Como era o dia-a-dia dos indivíduos nessa época? Nómadas, deslocavam-se grandes distâncias em busca de alimento, não sendo incomum morrer simplesmente de fome. Sem um abrigo fixo, estavam expostos ao frio, aos predadores e, claro, à doença. Uma simples infecção dentária podia ser fatal e o parto era perigosíssimo. Quando um membro do grupo adoecia, ou sofria um ferimento incapacitante após uma caçada, se não conseguisse acompanhar os restantes na nova viagem, era simplesmente abandonado. Não é portanto de estranhar que seja raro encontrar fósseis de indivíduos idosos, já que a maioria morria na juventude. 

Podemos olhar para a questão de outra forma: sabemos que a dimensão populacional nessa altura era muito pequena. O que impediu esses humanos de ter um crescimento significativo do seu número? Só há uma resposta possível: a miséria. Uma miséria atroz para nós hoje difícil de conceber, com todo o sofrimento a ela associado. Eram essas as condições providenciadas pelo hospitaleiro, adaptado e aprazível planeta Terra, que são sensivelmente as mesmas de hoje. 

Então, o que mudou? 

O que mudou foi a paulatina capacidade desta curiosa espécie, de alterar o ambiente à sua volta. Fruto da sua criatividade gerou o conhecimento que permitiu alcançar vidas incrementalmente menos miseráveis. E este processo foi lento, longo, quase imperceptível pela gradualidade com que cada etapa se instala. Roupa para proteger do frio. Armas para caçar. O domínio do fogo. Agricultura, com o consequente sedentarismo, com melhores abrigos e eventualmente pequenas “aldeias”. Estruturas em pedra. A roda. Utensílios em bronze. E por aí fora, de inovação em inovação, até aos nossos dias.

Há uma característica muito interessante na natureza iterativa desta progressão tecnológica: pensemos, por exemplo, na roupa. Hoje não pensamos na roupa como uma tecnologia, é um dado adquirido que faz parte da nossa vida quotidiana, não nos exige esforço em especial nem nenhum grau notável de manutenção. Mas a invenção da roupa teve consequências importantíssimas ao permitir a essa espécie, que só conseguia subsistir em África, expandir-se para outras regiões do mundo sem sucumbir aos climas mais frios. As primeiras roupas seriam certamente menos confortáveis, menos duradouras, exigindo mais esforço e tempo dos indivíduos para delas poderem beneficiar, mas, a pouco e pouco, tornaram-se um dado adquirido no qual já nem pensamos.

Outro exemplo mais moderno: a medição do tempo. Hoje em dia é impensável que uma pessoa não saiba as horas, tem sempre o relógio no punho ou o smartphone no bolso, ou outras formas de saber rapidamente que horas são, ao segundo. No entanto, até há bem pouco tempo não era assim, a noção do tempo para a maioria da população era uma noção aproximada, balizada pelos badalos da igreja. Hoje já mal pensamos em saber as horas como uma conquista, e no entanto é esta conquista que abre o caminho aos sistemas de geolocalização por GPS, que se baseiam em medições de tempo precisas a uma ordem de grandeza ínfima, e que, por sua vez, estão a transformar também a nossa percepção do sentido de orientação, em mais um conceito que se começa a pôr de parte como um dado adquirido, do qual nem nos lembramos ser um conforto arduamente conquistado pela nossa progressão tecnológica.

É todo este conhecimento instanciado em tecnologia que nos permite viver vidas confortáveis sem sequer pensarmos nas inúmeras coisas que tornam possível a nossa subsistência confortável e que nos faz ver o planeta como hospitaleiro e aprazível. Coisas como os sistemas de aquecimento para nos proteger do frio, a canalização para nos dar acesso a água potável, a rede eléctrica que habilita toda a nossa tecnologia mais moderna, o acesso à informação desde o rádio até à Internet... É esse conhecimento que damos (correctamente) por adquirido que nos permite viver tão confortavelmente no frio da Noruega como no calor da Austrália, que sem a tecnologia seriam muito mais inóspitos do que o Vale do Rift.

Tendo percebido os conceitos expostos acima, podemos chegar a Marte ou à Lua com apenas um pequeno salto conceptual.

É de facto senso comum achar que pessoas a viver numa colónia instalada em Marte vão estar numa situação fundamentalmente diferente de quem está na Terra. Mas esse, como diria Deutsch, é um erro paroquial. Pois, como vimos antes, uma vez instalada a tecnologia necessária para suprir necessidades diárias (imaginemos um sistema automático de fabrico de oxigénio a partir de óxidos de metal ou um sistema de protecção de raios UV), o indivíduo a viver em Marte vai tanto temer o perigo do vácuo e da falta de oxigénio como nós, aqui na Terra, tememos o perigo de ficar encharcados pela chuva que cai lá fora, enquanto nos sentamos confortavelmente no sofá de casa.

A realidade é essa, o astronauta já existe na Terra, e somos todos nós. Não no sentido literal da palavra (viajantes espaciais), mas no sentido em que dependemos inteiramente de tecnologia para sobreviver num ambiente inóspito.

E para o leitor mais céptico, finalizo o texto com um pequeno exercício mental.

Imaginemo-nos no século XVI, plena Idade Média. Encontrar-nos-íamos num ambiente bem caracterizado no nosso imaginário, com castelos, muralhas, espadas, camponeses, curandeiros. Agora imaginemos que alguém nos tenta explicar que, no futuro, teremos “uma grande carroça de metal, que viaja pelo ar, mais veloz do que o vento, e que transportará três centenas de pessoas de cada vez”. Além disso, “haverá milhares de pessoas no ar em simultâneo, a qualquer momento”. De tão impensável no contexto tecnológico dessa época, conceber tal conversa é comicamente ridículo. E no entanto é argumentável que existe uma maior distância tecnológica entre a Idade Média e a utilização rotineira do avião do que entre a utilização rotineira do avião e a utilização rotineira de viagens espaciais e da colonização do sistema solar…

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