Racismos, não-racismos e a urgência de lucidez

O absurdo de tudo isto é que as próprias iniciativas, pretensamente anti-racistas, tendem a resvalar para um dos traços que mais se associa ao racismo: o paternalismo.

Embora tal não deva interessar a ninguém, vejo-me, perante as actuais tendências, na necessidade de fazer uma declaração inicial: nasci em Lisboa, São Sebastião da Pedreira, a minha família do lado materno é descendente de judeus cristãos-novos da Beira-Baixa, e a família do lado paterno é descendente de polacos. Os meus pais, divorciados, recasaram, ambos, com mestiços: um cabo-verdiano e uma angolana. E eu sou pálida e branca, como a cal da parede.

Tudo isto faz parte de mim e da minha história e identidade pessoais, e não seria, obviamente, assunto, nem tão-pouco seria merecedor de qualquer pensamento mais demorado, se não fossem estes tempos estranhos em que vivemos, dominados por formas encapotadas de totalitarismos ideológicos vigorosos, a que todos assistimos num espanto de incredulidade, misturado com um torpor de resignação.

Os totalitarismos ideológicos que afirmam a existência de racismo, e aqueles que rejeitam essa mesma existência, como se as sociedades fossem assim: a preto e branco. Ou como se precisássemos de mais uma clivagem social, que coloca de um lado da barricada (a terminologia bélica é propositada) os racistas e os não racistas.

Uma clivagem perigosa, porque ao invés de aproximar e igualizar - o que deveria ser o seu propósito nobre e inatacável - cria, ou acentua, desconfianças e antinomias. E cria guetos. Guetos de revolta e guetos de medo, em que todos se sentem mal e desenquadrados, e em que se fecham cada vez mais. E todos sabemos que o fechamento e o desconhecimento do outro são os grandes motores do preconceito e do ódio.

Porque o absurdo de tudo isto é que as próprias iniciativas, pretensamente anti-racistas, tendem a resvalar para um dos traços que mais se associa ao racismo: o paternalismo, que menoriza aqueles que pretende defender e que ao fazê-lo incorre numa outra forma de iniquidade.

Atente-se em dois exemplos recentes: o primeiro, uma manchete de jornal que dá conta da existência de uma aluna cigana com boas classificações escolares e que quer ser juíza. Pois...

Haverá forma mais clara de paternalismo e de menorização de uma etnia? Estando proibidas (e muito bem) as alusões à pertença étnica, por exemplo, em notícias acerca de crimes, qual a razão para, em referência ao sucesso escolar e aspirações desta jovem, ser destacado o facto de ser cigana? Claro que uma resposta possível estará no exemplo, sabendo-se (estimando-se) que existe forte incidência de abandono escolar, entre os jovens de etnia cigana, particularmente, entre as raparigas.

Mas, como se sabe, as razões para esta situação de abandono escolar têm natureza complexa, e as respostas passam por medidas de políticas públicas que sejam verdadeiramente promotoras e inclusivas e que, para começar, estejam atentas (e actuem), por exemplo, às situações de casamentos de menores.

Só há duas vias: a desta actuação promotora e inclusiva, que deveria ser a preconizada por um Estado que se diz social, ou a do total relativismo cultural.

Em qualquer dos casos, a situação noticiada é inútil e segrega. No primeiro, porque o sucesso desta jovem resulta, seguramente, dos seus esforço e vontade individuais. No segundo, porque se todos devem viver segundo os seus padrões ancestrais de cultura, há o risco de esta jovem ser duplamente segregada (pela maioria, com os seus preconceitos, e pela minoria étnica de pertença, de cujos padrões se poderá, eventualmente, ter desviado).

O segundo exemplo, é o de uma conhecida marca de cosméticos francesa, que anunciou suprimir, dos seus produtos e publicidade, as expressões branqueador, pele clara ou iluminador. Será que também deixará de haver autobronzeadores?

E pergunto-me como se escolherão os produtos adequados a cada um e a cada pele, que constitui, afinal, esse lugar primeiro onde todos nos devemos sentir confortáveis? Ou passaremos todos a tingir-nos de igual, nessa fúria de homogeneização e padronização que parece querer dominar-nos? E pergunto-me qual a vantagem desta medida, se não a de aumentar os lucros, cavalgando as tendências dos tempos? Afinal é isto a sociedade de consumo capitalista, não é?

E pergunto-me, finalmente, por onde andará a lucidez?

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