Apoio de 10 milhões à madeira queimada dos incêndios de 2017 reduzido a 59 mil euros

O ex-ministro da Agricultura Luís Capoulas Santos anunciou em Janeiro de 2018 um apoio de 10 milhões de euros para parquear e valorizar a madeira queimada nos incêndios de 2017. Dois anos e meio depois, os parqueadores receberam 54 mil euros e os produtores podem receber 5,4 mil euros.

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Adriano Miranda

Dos 10 milhões de euros anunciados em conferência de imprensa pelo ex-ministro da Agricultura, Luís Capoulas, na primeira semana de Janeiro de 2018 e formalizados em Resolução do Conselho de Ministros, foram validados até ao momento apenas 59.580,35 euros. A informação foi confirmada ao PÚBLICO pelo Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF).

Em causa estavam apoios para os parques de madeira de serração de três euros por tonelada, no caso de parques secos de armazenamento de madeira descascada, e de 3,5 euros por tonelada, no caso de parques regados de armazenamento de madeira. Para além dessas verbas, era ainda atribuído um apoio directo ao produtor de quatro euros por tonelada de madeira entregue em parque. O apoio financeiro anunciado pelo Estado tinha como objectivo garantir um preço mínimo de 46 euros por tonelada à entrada do parque e de 25 euros por tonelada de madeira em pé, a ser paga ao produtor.

Quanto aos parques para madeira de trituração, o valor do apoio era de 1,50 euros por tonelada, até ao montante máximo de 250.000 euros por parque. Esse apoio era concedido mediante o cumprimento dos seguintes requisitos: recepção de madeira com diâmetro inferior a 20 centímetros; período mínimo de parqueamento da madeira a adquirir de três meses; preço mínimo garantido ao produtor da madeira em pé, no povoamento, de 10 euros por tonelada.

Do montante global até agora validado pelo ICNF, foram pagos aos parqueadores, pelo IFAP - Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas, na primeira semana de Junho deste ano, 54.102,99 euros. Aos produtores florestais afectados pelos fogos foi “validado para pagamento” o montante de 5477,36 euros. Porém, essa verba ainda não foi liquidada.

A AIMMP - Associação das Indústrias de Madeira e Mobiliário de Portugal, entidade que liderou um consórcio de seis parques de madeira queimada, confirmou o recebimento da parte da verba respeitante aos parqueadores. “As serrações, as empresas que fizeram o parqueamento, só receberam o primeiro dinheiro a semana passada [primeira semana de Junho]”, revelou ao PÚBLICO o seu presidente, Vítor Poças.

Produtores florestais de Pedrógão não receberam apoios

Estranhamente, para os produtores florestais de Pedrógão Grande não houve apoios. No concelho onde tiveram lugar os mortíferos incêndios que deflagraram a 17 de Junho de 2017 e se prolongaram por vários dias, o Sistema de Gestão de Informação de Incêndios Florestais (SGIF) registou, entre 1 de Janeiro e 31 de Outubro de 2017, 3653 incêndios florestais e 13.328 fogachos, que resultaram em 442.418 hectares de área ardida de espaços florestais, entre povoamentos (264.951 hectares) e matos (177.467 hectares).

No entanto, “para os incêndios de Pedrógão Grande nunca houve nenhuma medida dessas”, garante Jorge Fernandes, presidente da Apflor - Associação dos Produtores e Proprietários Florestais do Concelho de Pedrógão Grande.

O dirigente da Apflor, entidade que agrega 680 produtores florestais com as quotas em dia e mais de mil inscritos, afirmou que “aquele era um apoio aos madeireiros”. E continua: “Não tenho conhecimento específico, mas penso que houve alguns madeireiros aqui da zona que ainda chegaram a recorrer” a esse mecanismo de apoio.

Agora, “para os proprietários nunca chegou nada. Não, não chegou. Pelo menos em Pedrógão, e mesmo através da Associação [Apflor], nunca chegou nada”, acrescentou Jorge Fernandes, reiterando que apenas ficou “com a ideia de que havia alguns madeireiros a recorrer a esse apoio”. Diz também que “alguns ainda têm lá muita madeira desta altura”, embora desconheça “se já receberam os apoios”.

O ICNF explicou que “a concessão e respectivas regras de atribuição dos apoios” abrangiam “as entidades (pessoas singulares ou colectivas de natureza pública ou privada, nomeadamente organizações de produtores florestais, organizações das indústrias da madeira e autarquias locais)”, que tivessem armazenado madeira queimada de espécies resinosas provenientes de áreas atingidas por incêndios em 2017 nos parques de madeira constituídos ou ampliados para o efeito. 

O ICNF publicou um aviso de abertura de concurso em 8 de Fevereiro de 2018, “tendo nele constado, nomeadamente, os termos de apresentação das candidaturas, os critérios para a elegibilidade do material lenhoso, os respectivos prazos e os documentos comprovativos do cumprimento dos requisitos de atribuição dos apoios”.

As candidaturas, que abrangeram a constituição/ampliação de 33 parques (32 deles submetidos sob a forma de consórcio e um de forma isolada), foram objecto de decisão por parte do ICNF, “tendo os respectivos termos de assinatura sido assinados em 23 de Março e 3 de Abril de 2018”.

O manifesto de corte passa, aliás, agora a ser alargado a todas as operações de corte, corte extraordinário, desbaste ou arranque de árvores de espécies florestais que se destinem à comercialização e ao autoconsumo para transformação industrial, bem como a rastreabilidade do material lenhoso destinado à indústria de primeira transformação e à exportação. Essa obrigatoriedade consta no Decreto-Lei n.º 31/2020, de 30 de Junho, diploma que consta do pacote legislativo para a Floresta aprovado em Conselho de Ministros a 21 de Maio.

O Governo justifica a sua publicação com o Regulamento (UE) n.º 995/2010, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Outubro de 2010, e com a necessidade de uma “equilibrada gestão dos recursos florestais” e pelo facto de haver uma “crescente procura de madeira e de produtos da madeira a nível mundial, associada à exploração madeireira ilegal e ao comércio conexo”, o que se tornou “um motivo de crescente preocupação internacional”.

Primeiro pedido feito há um ano

Questionado sobre se corresponde à verdade que só mais de dois anos depois – na primeira semana de Junho de 2020 - é que foram efectuados os primeiros pagamentos, o ICNF esclareceu que “um primeiro pedido de pagamento, apresentado pelo Consórcio AIMMP, ocorreu em 28 de Junho de 2019, tendo o ICNF procedido à verificação da informação registada na plataforma informática criada para o efeito e, bem assim, procedido à verificação da documentação anexa de modo a validar a elegibilidade de cada um dos movimentos”.

Contudo, faz notar que, “durante este período foram por várias vezes solicitados vários esclarecimentos e documentos, de modo a permitir uma adequada e completa análise dos processos, tendo sido considerado elegível cerca de 19,9 mil toneladas de material lenhoso, de um total de 27,3 mil toneladas apresentado”.

O Instituto liderado por Nuno Banza sublinha que “toda a madeira recepcionada em parque é obrigatoriamente acompanhada pelo Manifesto de Abate e de Circulação do Material Lenhoso de Coníferas, da Guia de Transporte AT [Autoridade Tributária], da factura/recibo emitida pelo produtor, da factura emitida pelo operador económico que entrega a madeira em parque, e bem assim pelos documentos comprovativos da entrada e saída da madeira em parque”.

Para além da verificação de que madeira recepcionada cumpre os critérios de elegibilidade exigidos, o ICNF realça que “a mesma tem que igualmente observar outros requisitos, como sejam o de ter que permanecer em parque pelo menos durante nove meses, quando se trate de madeira de serração, e durante três meses, quando se trate de madeira de trituração”.

A gralha no regulamento

Ao PÚBLICO, Vítor Poças, presidente da AIMMP, fala de “um pagamento relativo a um primeiro pedido que apresentámos” em que “os valores que recebemos e o que está perspectivado é infimamente inferior” ao anunciado pelo Governo no início de 2018. Reconhece que “não foi má intenção do ministro [Capoulas Santos], nem do Secretário de Estado [das Florestas, Miguel Freitas]”, mas que “houve uma gralha na publicação do regulamento [Despacho Normativo n.º 2-A/2018]” que gerou dúvidas interpretativas.

“Em vez de dizer ‘ou à porta da fábrica’, puseram um ‘e’, que era ‘o valor à porta da fábrica e o valor pago ao proprietário’”.

Ora, segundo o presidente da AIMMP, “foi difícil para os proprietários provarem as duas condições”. E porquê? “Porque há os intermediários a meio, ou seja, há o proprietário, o intermediário compra ao produtor, depois o intermediário vende à fábrica, depois o intermediário não quer dizer a quem comprou a madeira… Portanto, houve um conjunto de condições que, administrativamente, dificultaram a elegibilidade da madeira parqueada”.

Quanto ao pagamento, o presidente da AIMMP fala de “uma guerra”. “O pagamento parece que era feito pelo ICNF, mas o ICNF teve de transferir o dinheiro para o IFAP, porque o despacho dessa portaria [Despacho Normativo n.º 2-A/2018 de 11 de Janeiro] dizia que o dinheiro tinha de ser pago pelo IFAP, mas que entrava no orçamento do ICNF; então, o ICNF transferiu o dinheiro para o IFAP e o IFAP transferiu o dinheiro para a AIMMP e a AIMMP transferiu às empresas que fizeram parte” do consórcio das empresas parqueadoras.

O INCF informou o PÚBLICO que, “da consulta da plataforma informática, à data de 15 de Junho de 2020, verificam-se que se encontram nela registadas cerca de 150.502 toneladas de material lenhoso, das quais cerca de 88.263 toneladas correspondem a madeira de serração e cerca de 62.239 toneladas a madeira de trituração”.

Diz o Instituto liderado por Nuno Banza que se “trata de um valor que certamente se encontra abaixo das expectativas iniciais, mas que resultará muito provavelmente do facto de o mercado ter funcionado e de os problemas relacionados com o eventual excesso de madeira não terem acontecido com o impacte inicialmente previsto”. 

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