Somos destemidas, não nos deixamos apagar

Mae Jemison e Lozen são alguns exemplos de mulheres na vanguarda da luta feminista e empoderamento feminino. Destemidas é necessária e fundamental para podermos evoluir como mulheres, como pessoas, como sociedade. A série mostra-nos que a história vai para além do que os livros da escola nos mostram.

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A série Destemidas é uma produção francesa que retrata histórias e feitos de mulheres e lutadoras feministas, abordando questões como a luta LGBTI+, a interrupção voluntária da gravidez e discriminações sociais no geral. É composta por 30 episódios, cada um dura cerca de três minutos e é dedicado a uma mulher diferente, destacando-se cada uma nas diferentes áreas na sociedade. 

Um dos episódios retrata Mae Jemison, médica, engenheira e ex-astronauta. Foi a primeira mulher negra a ir ao espaço. Logo no início do episódio, é possível ver-se que a professora não conseguia responder às suas perguntas, o que pode demonstrar a precariedade existente na educação a que muitas mulheres negras têm acesso. Mae vai depois estudar para uma escola onde é praticamente a única rapariga negra. Criticarem o cabelo de uma mulher negra é uma micro-agressão, e o facto de as colegas de turma da Mae olharem com ar suspeito para o cabelo dela também. “Se fores negra e mulher, tens que te esforçar o dobro para chegar onde queres”, disse o pai de Jemison à mesma. “Sou negra, sou mulher e nunca ninguém me vai impor limites!”: é esta a mensagem de Mae Jemison, que passa pelo que queremos que todas as mulheres negras sintam, desejando que não tenham mais que lidar com opressões e discriminações constantes.

Outra história abordada na série é a de Lozen. Nascida no século XVIII no Oeste Americano, cresceu no seio da cultura tradicional Apache. Lozen queria ir à luta, mas, segundo a sua cultura, teria de ficar em casa a cuidar das crianças. Os colonos americanos fizeram com que os Apaches tivessem de abandonar as suas terras, sendo Lozen uma figura fundamental nesta fuga aos colonizadores. Depois de ter colocado a sua aldeia em segurança e de o irmão Vitorio ter morrido, Lozen foi à luta para o vingar. Após ser presa, tornou-se uma heroína na luta dos Apache pela liberdade. “A força e a coragem não são exclusivas dos homens” explica-nos Lozen, mostrando o poder das mulheres.

Mae Jemison e Lozen são alguns exemplos de mulheres na vanguarda da luta feminista e empoderamento feminino. Este programa é necessário e fundamental para podermos evoluir como mulheres, como pessoas, como sociedade. A série mostra-nos que a história vai para além do que os livros da escola nos mostram. A série começou a ser transmitida na RTP2 em Março e estava a ser seguida com entusiasmo por muitas raparigas e jovens. A 25 de Junho, fomos surpreendidas com a decisão da RTP2 de não a voltar a exibir e de remover episódios da mesma da plataforma RTP Play. 

Essa decisão surpreendeu-nos como espectadoras de um programa cujo objectivo é apresentar “mulheres corajosas que mudaram o rumo da história” (nas palavras da própria RTP). Na origem da decisão está, segundo notícias vindas a público, uma recomendação do Provedor do Telespectador para que o programa fosse retirado e não voltasse, inclusive, a ser exibido. A sugestão do provedor terá sido imediatamente acatada pela directora de programas, Teresa Paixão. Entendemos que a decisão foi errada e fere o espírito de serviço público que motiva a existência da própria RTP e como ele deve ser entendido no século XXI. Pesam para essa apreciação os factos de a série, adaptada da obra Culottées, de Pénélope Bagieu, também ter sido transmitida pelos congéneres francês (France Telévision) e italiano (Radiotelevisione Italiana — RAI) e a sua produção ter sido apoiada pelo Programa de Media da União Europeia. 

Aquando da sua publicitação, a RTP contextualizou o programa no “mês da celebração do Dia Internacional da Mulher”. Retratar a coragem das mulheres e histórias invisibilizadas. Contar estas histórias é importante porque permite a todas as mulheres a abertura de um leque de possibilidades sobre o seu próprio futuro como mulheres e para criar um espaço com maior representatividade de identidades sexuais e etno-raciais.

Esse serviço público que a RTP estava a prestar não pode ser interrompido nem censurado. A Constituição da República Portuguesa inscreve no nosso ordenamento jurídico o princípio da igualdade entre cidadãs e cidadãos e o princípio da não discriminação pelo sexo e orientação sexual. Em 2007, a sociedade portuguesa decidiu descriminalizar a interrupção voluntária da gravidez, em 2010 o parlamento português entendeu por maioria legalizar o casamento civil entre casais do mesmo sexo e, em 2016, acabar com qualquer discriminação formal aos casais do mesmo sexo, alargando-lhes o acesso à adopção. 

Apesar destes avanços, instituições públicas como a Comissão para a Igualdade e Cidadania (CIG) e várias organizações não-governamentais têm alertado para a discriminação ainda existente na sociedade portuguesa contra pessoas LGBTI+. Por esse mesmo motivo, sucessivos governos e associações têm promovido campanhas pelo combate à discriminação e pela desconstrução de preconceitos. 

Quando a RTP decidiu cancelar a transmissão de um programa que tem como propósito a promoção da igualdade, dos direitos das mulheres e das pessoas LGBTI+, deu um sinal no sentido oposto. Abriu espaço à interpretação de que há direitos cívicos consagrados na lei que podem ser considerados de valor menor. Talvez tenha escapado nesta decisão, que lamentamos profundamente, o papel emancipatório, de reforço psicológico e de auto-estima que o programa estava a desempenhar para tantas mulheres e pessoas LGBTI+ que, infelizmente, vivem numa sociedade que ainda não conseguiu erradicar a violência de género, a “LGBTIfobia” e todas as formas de discriminação. 

Por todos os motivos anteriormente referidos, criámos uma petição onde solicitamos ao Conselho de Administração da RTP que anulasse a decisão de não voltar a exibir a série Destemidas nos canais da RTP e voltasse a disponibilizar todos os episódios na plataforma RTP Play. Depois do lançamento e partilha da petição, a 25 de Junho de 2020, a RTP 2 anunciou (à meia noite) que a série já não seria suspensa e voltaria a ser transmitida no dia seguinte, no horário normal. E os episódios retomariam todos à RTP Play. A directora, Teresa Paixão, afirma, através desse comunicado, que o episódio relativamente a Thérèse Clerc foi suspenso do espaço Zig Zag da RTP Play por, aparentemente, apresentar uma linguagem que não era adequada para o público-alvo (10-13 anos). 

Thérèse fez parte de diferentes movimentos pela liberdade, sendo uma lutadora importante da legalização do aborto. Fundou um centro cultural e social para mulheres vítimas de violência. A história de uma grande activista e militante feminista que lutou contra a guerra e lutou pelos direitos humanos não pode ser apagada. No comunicado, é também referido que o episódio da mesma voltará assim que a dobragem esteja feita. 

Embora a RTP 2 tenha voltado atrás com a decisão, a luta continua e é importante para combater as atrocidades presentes no nosso dia-a-dia. Há que garantir que algo parecido não volte a acontecer; não podemos ceder ao conservadorismo. 

Durante séculos, as mulheres, mesmo nos meios mais privilegiados, foram oprimidas. É preciso quebrar os estereótipos daquilo que é “suposto” e imposto. Aqui não há certo nem errado, há histórias de mulheres que mudaram a sua vida, e as vidas de muitas jovens que assistem a esta série. 

Seremos Thérèse Clerc, seremos Agnodice, seremos Mae Jemison, seremos todas as mulheres. Acima de tudo, seremos livres, mesmo que isso incomode uma minoria de pessoas que convive mal com o reforço da democracia, alargamento dos direitos humanos e a igualdade plena. Não voltamos a ficar caladas, a ser secundarizadas ou apagadas das fotos. Viemos para ficar e daqui não saímos.

Artigo de Beatriz Vieira, Catarina Rodrigues e Mariana Neves Martins, estudantes e proponentes da petição: “Não nos apagem: Pela reposição do programa “Destemidas” na RTP”. 

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