PanPopulismo

A era que vivemos, assente em sucessivos ciclos de medo (migrantes, terrorismo, pandemia) e baseados numa perceção constante da ameaça, fomenta o desenvolvimento do populismo.

“São 750 mil milhões contra os populismos”. Frase de Matteo Renzi, antigo primeiro ministro de Itália, a propósito do apoio aos Estados-membros, discutido no seio da União Europeia na sequência dos impactos da pandemia que vivemos. Porque, como Carl Sagan tão bem frisava, “afirmações extraordinárias requerem provas extraordinárias”, propomos um fact checking à afirmação, partindo do pressuposto que se cumpre a disponibilização da verba referida:

Embora o conceito de populismo tenha na sua raiz a ideia de “povo”, hoje tende mais para a perspetiva de “popular” ou seja, algo que vá ao encontro das preocupações (por vezes não publicamente assumidas) de uma parte da população. É, por isso, muitas vezes associado a um discurso sobre os assuntos relacionados com dimensões económicas (corrupção, por exemplo) e com a segurança face a outros grupos populacionais ou a cidadãos de outros países;
O populismo vive da identificação de “inimigos”, algo que resulta na criação de “grupos” não tanto por “terem muito em comum” mas por “terem um inimigo em comum”. Grupos que se desenvolvem e crescem a partir da segurança que o próprio grupo confere, a par da identificação de e com líderes, também eles populares, por populistas. Líderes a quem normalmente são reconhecidas características salvíficas (de abnegação pela causa, de nada temerem, de aceitarem o sacrifício pelo ideal do grupo);
Líderes que se desenvolvem e crescem a partir da descredibilização, caricatura e confronto com quem possa produzir qualquer tipo de contraditório: desde a pessoa que pensa diferente ou simplesmente questiona, seja ela um cidadão comum ou uma figura pública. Procura-se a descredibilização dos políticos, dos profissionais da área da comunicação social ou mesmo de áreas científicas que questionem crenças base do seu grupo. Procura-se, no limite, a deslegitimação do próprio sistema democrático através de teorias tendencialmente conspirativas;
O populismo promove sociedades e cidadãos polarizados e acredita que quanto maior a polarização maior é o seu espaço de afirmação e de crescimento. O populismo, dicotomiza. Força os extremos, procurando anular o meio termo, algo aos olhos dos populistas reservado a cidadãos sem coragem e manietados pelo sistema do “politicamente correto”. Força o “seguidismo” e a certeza permanente, procurando anular o debate e a dúvida, algo aos olhos dos populistas reservado a cidadãos fracos e pactuantes com o sistema do “politicamente correto”.
O populismo tende a tornar simplistas realidades e situações complexas. Vive de exemplos que são depois exagerados, intensificados e generalizados. H. Rosling no seu Factfulness dá alguns exemplos: Negatividade, notícias negativas são mais salientes e duradouras; Medo, o que é assustador capta mais a nossa atenção; Tamanho, números isolados e solitários impressionam; Generalização, categorias são úteis para se justificar o que se defende, ignorando diferenças dentro dos grupos; Perspetiva única, culpa e urgência, procurar ideias e soluções simples, identificar vilões e mudanças drásticas ou pessoas providenciais com respostas imediatas para problemas complexos.
A falácia simplista vive ainda da utilização de lógicas e, essencialmente, de uma retórica também simplista, recheada de pressupostos errados mas não diretamente comprováveis ou refutáveis. A razoabilidade e a negociação são estranhas ao populismo e aos populistas e, a par de qualquer confronto direto, apenas geram maior polarização, algo que promove maior dicotomização das pessoas e da sociedade.
A era que vivemos – do risco, como Rui Marques recentemente descreveu – assente em sucessivos ciclos de medo (migrantes, terrorismo, pandemia) e baseados numa perceção constante da ameaça, fomenta o desenvolvimento do populismo. A revolução tecnológica que vivemos exponencia-o: das redes sociais, sem mediação, ferramenta poderosa para fazer chegar e multiplicar mensagens simples sem espaço para o contraditório; aos media, por vezes assemelhados a tribunais populares que “condenam” antes do sistema julgar as situações; passando pelo big data que permite personalizar mensagens de acordo com dados sobre pessoas ou grupos; pelas fake news que promovem a prova sobre informações prévias veiculadas; até aos algoritmos de inteligência artificial que apenas fornecem o acesso ao “mesmo ângulo” das notícias, consoante os interesses partilhados e os grupos criados.
Aqui chegados, mudam os 750 mil milhões de euros estes pressupostos? Não. Mas podem dar-nos tempo e contribuir para que a ameaça diminua através do crescimento da confiança nas instituições.
Precisamos de tempo e condições para provocar mudanças nos pressupostos anteriores. Um bom exemplo é utilizar o contributo do prémio Nobel da Economia, Richard Thaler, com o seu conceito de paternalismo libertário, baseado em pressupostos do comportamento e tomada de decisão das pessoas, construídos ao longo de décadas com base, também, em significativa investigação e estudo do campo da Psicologia. É fundamental dar às pessoas o acesso ao contraditório, a diferentes pontos de vista. Como? Através da alteração na forma como os algoritmos hoje funcionam que, ao invés de nos darem sempre aquilo que procuramos, passariam a dar-nos também o seu contraditório. Promovendo, ainda, o multilateralismo, intervindo na prevenção e inoculação das fake news e na garantia da utilização da multiplicidade de dados pessoais disponíveis apenas no interesse dos cidadãos, seus verdadeiros e únicos proprietários.
Neste sentido, o fact checking da afirmação de Matteo Renzi resulta num Sim, mas... Com um mas do tamanho da importância de por estes dias se fazerem múltiplos fact checking e de se compreenderem (e pela compreensão, prevenirem) as diversas formas de polarização e populismo. Através do respeito de todos e de cada um de nós. Pelo bem-comum.

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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