Covid-19: quem quer ajudar os cientistas a seguir a pista da perda de olfacto?

A perda de olfacto é um dos sintomas comuns associados à infecção por SARS-CoV-2 e é uma pista que pode servir de marcador no rastreio da doença. Os portugueses foram chamados a participar em projectos científicos internacionais.

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Muitos doentes com covid-19 lidam com uma anosmia, ou seja, uma perda total do olfacto Rui Gaudêncio

Os portugueses podem ajudar os cientistas a saber mais sobre a perda do olfacto, um dos sintomas mais comuns associado de uma forma especial à covid-19. O SmellTracker é um estudo que envolve cientistas em nove países e que em Portugal está a ser coordenado por investigadores do Centro Champalimaud e propõe um teste online para avaliar a função olfactiva com o recurso a ingredientes que todos têm em casa. Por outro lado, há um outro consórcio internacional com 600 cientistas de 50 países que também envolve Portugal e que se está a dedicar ao estudo do mesmo problema, contando com a participação dos cidadãos. São projectos de “ciência-cidadã”.

Há já mais de uma centena de estudos sobre a perda de olfacto em doentes com a covid-19. Ao que tudo indica, este sintoma pode surgir logo nos primeiros dias da manifestação da doença e, muitas vezes, instala-se de forma repentina sem que esteja associado a um nariz congestionado. Em algumas pessoas, constitui um sintoma precoce, seguido por outros, tais como tosse e febre – enquanto noutras pode até ser o único sinal óbvio de infecção. Na maioria dos casos, os doentes lidam com uma anosmia, ou seja, uma perda total do olfacto. No Reino Unido, as autoridades de saúde recomendam que as pessoas que detectem este problema devem auto-isolar-se, mesmo que não tenham mais nenhum sintoma da doença.

O sintoma pode ter algumas características únicas no contexto da covid-19 e até já fez nascer o termo “coronosmia” (que junta este coronavírus à anosmia). Não só a perda de olfacto parece ser em muitos casos súbita como a recuperação deste problema – na maioria dos casos os doentes parecem recuperar – também é repentina. Alguns estudos tentaram esclarecer os mecanismos desencadeados no organismo que provocam este sintoma, explorando não só o que acontece no sistema respiratório e nas células basais no epitélio nasal, mas também o processo ligado aos receptores neuronais do olfacto no cérebro. Mas não é preciso sequer ir tão longe quanto isso para encontrar problemas mais simples de perceber, sobretudo se os cidadãos estiverem dispostos a ajudar os cientistas. “Ainda não sabemos porque é que a perda do olfacto é um dos primeiros sintomas da doença. Esta é uma área de investigação que está muito activa”, nota ao PÚBLICO o neurocientista Zachary Mainen, do Centro Champalimaud, que lidera o grupo que está a coordenar o estudo do SmellTracker em Portugal.

O SmellTracker envolve, entre outras frentes de estudo, um teste olfactivo online que pode ser feito por qualquer pessoa em casa e que está disponível em 15 línguas, entre as quais o português. Por cá, o projecto está a dar os primeiros passos, mas o arranque oficial foi em Março e já conseguiu captar o interesse de cerca de 15 mil pessoas, segundo adianta o investigador do Centro Champalimaud. Os resultados preliminares dos dados já recolhidos indicam que esta é uma ferramenta que “poderá ajudar as pessoas a monitorizar o seu estado de saúde, servindo para detectar e também para acompanhar a difusão da covid-19 na população”.

Da canela à vodka e champô

O processo é simples. É pedido um registo rápido do participante que deverá seleccionar odores de cinco grupos diferentes. Canela, mel, café, pasta de dentes, perfume habitual, champô que está a usar, mostarda, menta, vodka, orégãos, salsa, compota de morango, sumo de laranja, queijo azul, etc. Provavelmente, apenas a referência a estes ingredientes do dia-a-dia já traz uma memória de cheiro, mas não é isso que se pretende aqui. “Qualquer pessoa pode fazer este teste muito simples para avaliar facilmente se o seu olfacto está alterado – uma indicação de que essa pessoa poderá ter covid-19”, diz Zachary Mainen. O comunicado sobre este estudo adianta ainda que “no final deste curto teste, cada participante fica a saber se está, ou não, a apresentar uma resposta olfactiva anormal”. O teste pode ser repetido várias vezes para uma monitorização contínua.

“A elevada taxa de infecção pelo vírus significa que encontrar uma forma fácil e rápida de detectar casos de covid-19 poderá ser crucial para a saúde pública e individual. No entanto, a realização de testes fisiológicos em grande escala para a covid-19 é difícil de implementar. É aí que o SmellTracker entra em cena”, diz Cindy Poo, uma das investigadoras envolvidas no estudo, citada no comunicado. 

O projecto está a decorrer em nove países (Suécia, Alemanha, França, Holanda, Noruega, Espanha, Itália, Japão e Portugal). “Pedimos às pessoas que façam o teste. É fácil e é mesmo interessante avaliar a nossa acuidade olfactiva. Quanto mais pessoas participarem, melhor conseguiremos avaliar a eficácia desta abordagem em termos de saúde pública e pessoal”, apela Zachary Mainen.

E o que se deve fazer quando o resultado der algum tipo de alteração na resposta olfactiva? “Sempre que tiver sintomas de covid-19, incluindo perda de olfacto, consulte um médico”, responde o neurocientista. O estudo pode, assim, ajudar algumas pessoas a detectar um problema e procurar ajuda mais cedo e, ao mesmo tempo, os cidadãos estarão também a ajudar os cientistas a saber mais sobre este sintoma com características que parecem distintivas na covid-19.

O inquérito proposto pelo consórcio GCCR (sigla para Global Consortium for Chemosensory Research) tem o mesmo objectivo de recolher informação para compreender melhor os problemas com o gosto/paladar e cheiro/olfacto, relatados por doentes com covid-19. Susana Soares, do Departamento de Química da Faculdade de Ciência da Universidade do Porto, está na lista de participantes neste projecto que junta 600 cientistas de 50 países. Neste caso, as pessoas podem participar em duas acções, uma é um inquérito, outra é um teste que também usa coisas que facilmente pode encontrar em casa, e que demoram cerca de dez minutos.

Em resposta ao PÚBLICO, Luís Saraiva, investigador-principal no Sidra Medicine (Qatar) e lídero do GCCR para Portugal e para todos os países de língua portuguesa, adianta que no do dia 28 de Junho o projecto contava já com mais de 38 mil participantes (a nível global) e que 1123 acederam ao inquérito em português. “O objectivo principal do consórcio é averiguar a prevalência do perda de olfacto e/ou paladar em pacientes com covid-19 e compará-la com outras doenças respiratórias ou virais (por exemplo, gripe ou constipações)”, explica. 

Os primeiros resultados do estudo foram já publicados na revista cientifica Chemical Senses, no passado dia 20 de Julho. “Nessa publicação nós descrevemos como o nosso olfacto, paladar, e a nossa capacidade de sentir picante, frio ou dormência na língua (quimestesia) é afectada na covid-19”, resume o investigador. Agora, os mesmos autores estão já a preparar a publicação de um novo artigo que “detalha uma análise comparativa da perda do olfacto, paladar e quimestesia em milhares de indivíduos afectados por covid-19 ou outras gripes”, anuncia Luís Saraiva. “Neste estudo, estamos também a investigar se podemos utilizar alguns destes sintomas para facilitar o diagnóstico de indivíduos afectados por covid-19 e se identificamos factores que consigam prever a recuperação do olfacto, paladar ou quimiostesia.”

A pista sobre a perda do olfacto tem despertado o interesse de muitos cientistas e parece ser uma marca desta pandemia. Também já há uma app que explora este problema. Quanto mais pessoas se envolverem e participarem nestes projectos, mais longe os cientistas conseguem chegar. Se não for por mais nenhum motivo, este já será um importante objectivo.

Notícia actualizada com declarações do investigador Luís Saraiva.

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