Pedir ajuda é o mais importante

Nos últimos anos, várias iniciativas têm tentado melhorar o acesso aos serviços públicos por parte das pessoas em sofrimento psicológico.

Submersos e por vezes atordoados pela avalanche incessante de notícias sobre a covid-19 a que temos estado sujeitos nos últimos meses, as circunstâncias do recente falecimento do actor Pedro Lima confrontou-nos mais uma vez com a tão difícil e complexa questão do suicídio.

Este acontecimento, que constitui uma tragédia a nível familiar e do círculo de amigos do actor, tem tido uma grande repercussão mediática, decorrente de se tratar de uma figura querida do público, tocando-nos a todos de uma maneira ou de outra.

Num país em que a saúde mental tem tido sempre um lugar secundário na agenda mediática, a que não é estranha a quase completa ausência de figuras públicas a abordar esta área em termos pessoais (o depoimento da apresentadora Liliana Campos foi uma excepção que cumpre aplaudir), ao contrário do que já acontece há muito com outras doenças (ex. cancro da mama), é inevitável que o choque e a surpresa que todos sentimos nos leve a reflectir sobre o suicídio e as suas circunstâncias determinantes.

Na perspectiva de quem tem de organizar as respostas no campo da saúde, a reflexão deve, entre outras, incluir duas perguntas nucleares: a) o que sabe a população portuguesa sobre suicídio, no que se refere aos seus determinantes? , b) o que sabem as pessoas sobre o que fazer perante o aparecimento de ideias de suicídio?

No que se refere ao conhecimento, sabe-se hoje com base em estudos científicos e na prática clínica que o suicídio, sendo um acto individual, é condicionado por um conjunto de factores determinantes, de natureza biológica e social.

Sendo assim, é importante que a população conheça, em primeiro lugar, o perfil de factores de risco para o suicídio em Portugal: género masculino, idade superior a 55 anos, isolamento social, viuvez e separação, baixa escolaridade, dificuldades financeiras, consumo excessivo de bebidas alcoólicas, existência de depressão (seja no presente seja na história prévia). A depressão é um aspecto absolutamente crucial neste contexto, uma vez que uma percentagem muito elevada de pessoas com ideação suicida tem uma perturbação depressiva, que por motivos vários pode não ter sido diagnosticada, e consequentemente não tratada.

Em segundo lugar, é necessário que se comecem a desfazer de uma vez por todas algumas ideias atávicas sobre o suicídio (e a depressão) que ainda estão muito disseminadas na nossa população. Entre estas, as ideias de que o suicídio é uma fuga, um acto de cobardia, uma mera chamada de atenção, que só acontece aos outros, que só depende da “força de vontade” da pessoa, que só acontece a pessoas “fracas de espírito”. A persistência destes pensamentos em largas franjas da população tem tido como resultado a manutenção de um estigma social fortíssimo contra o suicídio (e contra a depressão), obscurecendo ou mesmo omitindo os condicionantes da profunda dor psíquica que estão na sua base. O estigma pode ser tão forte que inibe a própria pessoa em sofrimento a verbalizar o que sente a familiares e amigos, os quais podem posteriormente desenvolver uma intensa culpabilidade por sentirem que não foram capazes de detectar a tempo eventuais sinais premonitórios.

O estigma face ao suicídio é, aliás, parte não despicienda do estigma mais generalizado face à doença mental que ainda persiste na sociedade portuguesa, atingindo transversalmente todas as camadas sociais e áreas profissionais, e que constitui um dos maiores obstáculos à procura de ajuda por parte das pessoas com depressão e ideias de suicídio.

Ter um conhecimento sobre os factores de risco para as condutas suicidárias (nomeadamente sobre a presença quase constante da depressão) é importante, estar sensibilizado para a necessidade de combater o estigma dentro de nós é igualmente relevante, mas não chega. Para saber o que fazer, é necessário que a população saiba que existem profissionais e estruturas atentos a esta problemática e preparados para as ajudar.

Nos últimos anos, várias iniciativas têm tentado melhorar o acesso aos serviços públicos por parte das pessoas em sofrimento psicológico. Numa primeira linha, os Cuidados de Saúde Primários estão completamente disponíveis para ajudar as pessoas e as suas famílias, num ambiente terapêutico em que o conhecimento prévio do sistema familiar funciona como um factor facilitador para a expressão das vivências depressivas. Tal como nas outras áreas da saúde, os profissionais dos centros e saúde devem ser a porta de entrada principal para as situações de depressão, estando particularmente sensibilizados para as dificuldades que a maioria das pessoas sente na verbalização de ideias de suicídio.

Numa segunda linha, os Serviços Locais de Saúde Mental, que existem em praticamente todos os hospitais gerais em Portugal, estão especialmente vocacionados para a abordagem destas situações, o que tem vindo a ser exponenciado pela articulação crescente com os Cuidados Primários de Saúde. Um número crescente destes serviços disponibiliza, para além de atendimento em consulta e no serviço de urgência, acompanhamento através de visitas domiciliárias, o que é de enorme importância na assistência a pessoas idosas e sós, particularmente se residentes em zonas isoladas.

Paralelamente, existe uma multiplicidade de apoios e recursos na comunidade (associações, municípios, etc.) a que as pessoas podem recorrer: as linhas telefónicas de apoio são um bom exemplo de entidades com um papel de relevo nesta área, e que podem ser utilizadas pela população, com garantia de confidencialidade.

Facilitar o acesso das pessoas em sofrimento psicológico é particularmente importante no contexto da pandemia que estamos a viver. Desde o início do confinamento, verificou-se uma diminuição importante do número de consultas, quer por reorganização interna dos hospitais, para fazer face ao impacto da pandemia, quer por receio de contaminação das pessoas. Já em fase de desconfinamento, é crucial que as pessoas com sintomas depressivos, principalmente se acompanhados de ideias de suicídio, voltem a recorrer aos serviços de saúde sem receio.

O suicídio não é na maior parte das situações o resultado de um impulso momentâneo. Pelo contrário, resulta de um processo mais ou menos prolongado, num crescendo de sofrimento psicológico e perda de esperança, em que a pessoa se debate com pensamentos ambivalentes sobre o que irá ou não fazer.

Conhecendo a rede de serviços públicos, de apoios comunitários, de linhas telefónicas, o nosso apelo resume-se, em última instância, numa frase simples: ainda que por vezes sinta que nada pode mudar e nada vale a pena, peça ajuda.

Existe um conjunto muito vasto de profissionais que estão disponíveis para a dar.

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