Amor, bola e superstições em tempos de pandemia

Claro que uma coisa não tem nada a ver com a outra. O amor entre duas pessoas é muito mais importante e frágil. Pode acabar. O amor por um clube não morre. O adepto com quem vivo nunca vai trocar o Sporting, nunca vai ser do Benfica.

Não é que não goste de futebol, mas não ligo. Não fico empolgada com pessoas a correrem atrás de uma bola e o barulho do estádio e dos relatos deixa-me cansada. Emociono-me quando há vitórias, quando vejo gente a gritar, aos saltos e aos abraços a estranhos. Pode ser com a selecção, pode ser com uma equipa qualquer, muita gente feliz ao mesmo tempo, com alguém de quem gosto pelo meio, dá-me vontade de chorar. Apesar disso, não ligo patavina a bola.

Mas vivo com um homem que liga. Com o tempo, aprendi que, se quiser arreliá-lo, é só dizer-lhe que o clube dele é o do privilégio e da aristocracia. É a única vez que o vejo com pontas de fúria nos olhos, um coração marxista despedaçado. Quando quero acarinhá-lo, mando-lhe fotografias da nossa filha a escolher, na confusão de bonecos, a mascote do clube para brincar. Faz logo circular a imagem por amigos e familiares:

– Eu não influencio nada. Mas está no bom caminho!

Nos últimos tempos, regressaram cá a casa as conversas esotéricas sobre o tema. O imbróglio não é fácil de explicar. Acontece que, em alguns jogos, e apesar da sua personalidade racionalista e ateísta, este adepto cumpria uma série de rituais que acreditava darem boa sorte. Uns para serem cumpridos dentro do estádio, outros para quando os jogos eram fora de Lisboa e vistos em casa. Eram eles: vestir a camisola de lã, com as cores do clube, que a madrinha lhe deu há 30 anos e que alargou tanto que ainda lhe serve. Não ver partidas com um amigo em particular que é do mesmo clube — os dois concluíram que dava azar. Escolher, no intervalo do jogo, e caso não esteja a correr bem, uma música que ajude a equipa a dar a volta. Ainda na hipótese de mau jogo, mudar de canal, caso esteja a dar em mais do que um.

Ora, desde que as idas ao estádio ficaram suspensas, o dilema regressou. Esse imbróglio já tinha existido antes cá por casa, quando a nossa filha nasceu. Quando ela era mais pequenina, as idas ao estádio diminuíram e alguns jogos passaram a ser vistos em ambiente doméstico — algo que agora se repete em tempos de pandemia, com os estádios fechados aos adeptos.

Como as partidas eram, e são, muitas vezes, ao final da tarde ou início da noite, horas de ponta quando se tem uma pequena em casa, começaram a ser vistas também em diferido. É que este adepto, pai de uma catraia irrequieta, gosta de ver os jogos sossegado. Nesses dias particulares, depois das sopas, dos banhos e das histórias para dormir — momentos nos quais gosta de estar, mas que também perturbam a concentração do apoiante fervoroso —, este sócio senta-se tranquilo no sofá e puxa o episódio para trás. Para conseguir usufruir totalmente, é preciso que os telemóveis tenham sido desligados nas horas anteriores, para que nenhum alerta ou mensagem o avise do resultado, ou de como está o jogo. Quando se senta no sofá, depois da azáfama rotineira, não sabe como ficou, ou está a correr, o jogo.

Nessa altura, eu — que também recebo alertas no telemóvel, mas tenho indicações precisas para nada dizer — já sei se, no fim, se vai levantar alegre ou triste. É uma confusão de tempo, uma mistura de presente, passado e futuro.

Mas a questão que voltou agora, em plena pandemia e com estádios fechados, a martirizar este adepto é a de saber se deve ou não repetir aqueles rituais, mesmo que o jogo já tenha passado. Tem receio de que a ausência da camisola de lã, da música no intervalo e da mudança de canal, possa deixar a equipa em má forma ou ser responsável por algum azar. Então, volta e meia, diz-me, como quem não quer a coisa:

– Parece muito estranho se repetir os rituais todos mesmo que o jogo já tenha acontecido?

Eu levanto as sobrancelhas e os ombros:

– Não sei. Achas que pode não ganhar por causa disso?

Não devemos ser os únicos namorados a fazer perguntas absurdas e a fingir respostas sérias. Se quiser atenções, posso fazer o mesmo. Imaginemos o seguinte diálogo:

– Gostas mais de mim ou do Sporting?

– Que pergunta. De ti, claro. Uma coisa não tem nada a ver com a outra.

Foto
DR

Eu sei que não tem. O amor entre duas pessoas é muito mais importante e frágil. Pode acabar. O amor por um clube não morre. O adepto com quem vivo nunca vai trocar o Sporting, nunca vai ser do Benfica. 

E vai sempre sofrer pelo clube, seja no estádio, em casa, seja até a ver um jogo que já passou. Há emoções que nem uma pandemia consegue mudar.

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