O fétiche do racismo e a vandalização de ícones do passado

Interiorizámos há muito a consciência de que tudo o que temos representa acumulação de sucessivos passados: os monumentos, os nomes e traçados de praças e ruas, as colecções em museus e… as estátuas obviamente.

É conhecida a escalada que das iniciais denúncias setecentistas do chamado ‘fetichismo do objecto’ conduziu ao ‘fetichismo da mercadoria cultural’, argumentado por Theodor Adorno como extensão do conceito de Karl Marx de ‘fetichismo da mercadoria’, e levou ainda à chamada ‘cultura de casino’, tal como lhe chamou George Steiner no início deste século. Contra este enfeitiçamento, indutor do princípio do “máximo impacte e instante obsolescência” encontra-se o património cultural, intrasacionável por natureza. Acontece que a rede de resistência do património cultural ao fetichismo da mercadoria conheceu de facto grandes e graves refluxos nas décadas mais recentes. Primeiro, foram os objectos (Umberto Eco, por exemplo, denunciou-o bem nas suas Viagens à Hiperrealidade dos EUA), depois os próprios conceitos que passaram a ser usados por alguns como fétiches.

No quadro em que nos situamos, a palavra mais enfeitiçada é “racismo”. Ele existe, num certo sentido, em todas as sociedades, ocidentais ou orientais, do norte ou do sul, mais do que não seja sob a forma de “etnocentrismo” (veja-se por exemplo o Raça e História, livrinho precioso de Claude Lévi-Strauss sobre o assunto). E Portugal, claro, não foge à regra. Não nos venham com os mitos de que o nosso colonialismo foi mais benigno do que o de outros. Nada disso: fizemos (e uso o plural inclusivo porque de facto me incluo neste caldo de cultura que é o ser português) as mesmas aleivosias, cometemos os mesmos crimes do que outros, quando pudemos.

A maior parte do nosso racismo é histórico: inúmeros termos e expressões idiomáticas o documentam. Outro mantém-se actual. Contra os ciganos, asiáticos, semitas (judeus ou árabes) e obviamente, máxime talvez, os africanos negros. Se pobres e vivendo em periferias degradadas, pior ainda. Mas não se pretenda que a situação aqui vivida é a mesma de outros países. Não houve genocídios (excepto um, no séc. XV, sobre judeus), como ocorrem ainda agora noutras latitudes. E não temos há muito escravos, que no mundo são ainda em número de quase três dezenas de milhões, a acreditar no Global Slavery Index. Temos “quase escravos”, contudo, mas não se definem pela cor da pele: mão-de-obra imigrante explorada em certas unidades agrícolas... e portugueses contratados em Espanha por exemplo, na agricultura ou na construção civil, como às vezes vemos pelas operações da Guardia Civil.

Tudo é bem pior no continente americano. Na chamada América Latina, com países construídos pelas metrópoles coloniais, as elites dominantes brancas ainda hoje praticam níveis de segregação chocantes contra o que resta das populações indígenas. Nos EUA a situação é catastrófica. O racismo constitui aí a maior distopia inerente à própria fundação do país, que primeiro dizimou comunidades índias, para depois segregar as negras, mantidas escravizadas até muito tarde. Imaginemos que há somente século e meio, em plena Regeneração e Positivismo científico, existiriam em Portugal entre 500 a 600 mil escravos, acantonados em áreas especiais e mantidos até para criação ("slave breeding industry”), visando a garantia e incremento desse tipo de mão-de-obra. Retidas as proporções, tal seria o quadro correspondente em Portugal (com 4 a 5 milhões de habitantes à época) ao que acontecia nos EUA (cerca de 30 milhões de habitantes para cerca de 4 milhões de escravos). A ser assim, obviamente que continuaríamos a viver com intenso dramatismo esse quadro e quem sabe se não tentaríamos também sublimar a nossa má consciência com o proselitismo da invectivação dos outros e a destruição de ícones do passado que nesses outros constituem expressão de sedimentação do contrato social, feito secularmente tanto de luzes como de trevas.

É enfeitiçados pela bitola americana que os auto-proclamados “activistas anti-racistas” vêem o mundo. Ora, em grande parte deste outro mundo interiorizámos há muito a consciência de que tudo o que temos representa acumulação de sucessivos passados: os monumentos, os nomes e traçados de praças e ruas, as colecções em museus e… as estátuas obviamente. Cruzamo-nos a cada dia com memórias que nos incomodam, mais do que nos enaltecem. Algumas tornam-se por vezes intoleráveis e podem, devem ser apeadas (dificilmente se concebe que possam ser destruídas, contudo). Hitler, Saddam, Pinochet e tantos outros (curiosamente menos Salazar, que deixámos ficar nalguns lugares, embora noutros o tenhamos escondido). Mas será o caso das estátuas agora vandalizadas? Há mais razões para repudiar Alexandre Magno e Júlio César (certamente ditadores e escravocratas), Cervantes, Colombo, Vieira, Voltaire ou Churchill do que Átila, Cid, Saladino, Gengis ou... Shaka e Nzinga? Até Aristóteles defendia filosoficamente a escravidão. Vamos por isso destruir todas as suas representações no espaço público? Vamos passar a fazer praças e jardins de pedestais vazios e transformar os museus em “penitenciárias do passado”?

Claro que nenhum ícone deve estar fora do escrutínio. E pode ser objecto de crítica, quiçá de intervenção mordaz. Não me ofendem, por exemplo, os adornos em pano que colocaram na estátua do Infante D. Henrique em Lagos, fazendo dele um misto de cego e forcado. Todavia, se tivesse passado pela cabeça dos provocadores danificar a estátua com pichagens ou arrastá-la pelas ruas e atirá-la ao mar, bom, aí o caso mudaria totalmente de figura: seria um acto puro e simples de vandalismo. Porque afinal o que resta da intersecção de todos os que não tiveram pecados, mais a mais vistos à luz do nosso tempo? Nada, nem a Cinderella, nem os “santos/heróis” que agora veneramos: Gandhi ou Mandela, Luther King ou Madre Teresa... Há limites, por certo, e alguns foram já nomeados. Mas o importante é libertarmo-nos dos fétiches (próprios ou importados), impregnarmo-nos da cultura de cada país concreto e convivermos racionalmente com tudo o que não é nem preto, nem branco — e é para manter, porque nos faz adultos e cidadãos.

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