As mulheres só podem olhar para duas direcções

As mulheres não podem olhar para todas as direcções – elas estão confinadas a olhar ou para baixo ou para um ponto qualquer de um horizonte indefinido. Caso se aventurem a olhar, por vontade própria ou por acidente, nos olhos de um homem, arriscam-se, no mínimo, a algum desconforto.

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Fui criado por mulheres e sempre tive mais amigas que amigos. Julgava conhecer a categoria até a minha ignorante arrogância masculina ser completamente deitada abaixo por uma colega de trabalho. Contou que estava à espera do metro na Alameda quando um homem desconhecido, aparentemente bonito e bem vestido, se meteu com ela, seguiu-a até ao trabalho e, já à porta do nosso edifício, disse “podes dar-me o teu número?”. Esperta, a cabo-verdiana disse “Sorry, I don’t speak portuguese” ao que ele, também esperto, respondeu “No problem, can I have your number?”.

Este não foi um episódio daquelas fatelas comédias românticas. Foi uma situação grave que a deixou tão perturbada que decidiu mudar a rota dos transportes todos os dias, para despistar uma possível e real ameaça. Eu já sabia que situações dessas aconteciam muito às mulheres, mas, o que me chamou realmente atenção no depoimento ofegante foi o enfático “eu nem olhei para ele, nem fiz contacto visual, nem nada!”. Foi aí que eu, na minha ignorante arrogância masculina, me apercebi de um defensivo comportamento feminino: seja a andar na rua ou nos transportes públicos, as mulheres não podem olhar para todas as direcções – elas estão confinadas a olhar ou para baixo ou para um ponto qualquer de um horizonte indefinido. Caso se aventurem a olhar, por vontade própria ou por acidente, nos olhos de um homem, arriscam-se, no mínimo, a algum desconforto.

Até então nunca tinha questionado o porquê dos olhares de ângulo inferior a 90º, nem o porquê da pressa em chegar a um lugar diferente do planeado pelo andar. Erro meu, falha minha. É como se as mulheres tivessem de sair de casa com lentes especiais de repulsão magnética. Infelizmente, o contacto que o feminino desconhecido tem com o masculino desconhecido sempre esteve condicionado ao mais puro instinto de sobrevivência. Isso é lamentável e inadmissível para nós, seres humanos membros de uma sociedade. Para mim, as mulheres só podem olhar para duas direcções e as justificações para esses torcicolos voluntários estiveram sempre lá.

Há uns dias, uma conhecida dizia que dizia à filha adolescente para nunca fazer contacto visual com nenhum homem ou rapaz. Há umas semanas, uma colega da faculdade contava que tinha sido agarrada no braço por um senhor a quem tinha perguntado onde ficavam os correios. Há uns meses, uma amiga relatava que tinha caído na rua e que um homem, ao ajudá-la a levantar-se, aproveitou para agarrar partes não agarráveis em plena luz do dia no Rossio.  

O ideal feminino Dangerous de que fala Michael Jackson nunca foi tão utópico. Admito, contudo, que ao referir-me às “mulheres”, estou a cair na típica generalização polarizada do “as mulheres são todas iguais” e “os homens não prestam”. Trata-se aqui, sim, de um padrão porque, apesar dos movimentos feministas estarem numa evidente fase de expansão e trazerem um consequente iluminismo social, não acho que se verifique, para já, um entusiasmado sentimento colectivo de empoderamento da mulher.

Caminhamos para lá e já estamos bem melhor, é verdade... Mas para que o “lá” chegue mais rapidamente, nós vamos ter de exercitar diariamente a nossa Aretha interior e melhorar o nosso R-E-S-P-E-C-T. Hoje em dia, depois deste momento de iluminação, posso dizer que a minha ignorante arrogância masculina está menos ignorante e menos arrogante do que estava há uns tempos. Gostava que as mulheres pudessem olhar para todo o lado, assim como nós. 

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