A covid-19 e o elitismo

Quando o vírus desceu na escala social, a abordagem começou a mudar também no plano comunicacional face à doença. A compaixão pelos atingidos está a ser substituída pela sua culpabilização.

Com a estratégia de “achatamento da curva” que seguimos evitaríamos – e evitámos – que os cuidados intensivos entrassem em rutura e os cuidados hospitalares requeridos pudessem ser prestados sem a mobilização de muitas respostas precárias e de emergência. Tivemos sucesso nas duas frentes. A estratégia funcionou.

Ao contrário do que a princípio se temia – não esqueçam a equivocada fotografia divulgada pela PSP com a iconografia da repressão de ameaças violentas, da espada à exibição de muita massa muscular e testosterona –, não houve desordem nem pilhagens, aumento da insegurança ou crime, aqueles que foram atingidos pelo dever cívico de recolhimento foram para casa, as ruas ficaram desertas, mas nada parecido com o apocalipse do Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago caiu sobre nós.

As forças policiais intervieram nessa fase com discrição e sentido pedagógico. Não vimos fotografados nem que idade, cor ou aspeto tinham os infetados que saíam de casa. Os agentes que se faziam filmar pelas televisões a impedir os automobilistas de fazerem viagens desnecessárias apareceram-nos pedagógicos e corteses.

Tudo isto foi potenciado por vivermos nessa fase da covid-19 o regresso de uma sensação que muitos de nós desconheciam, que a modernidade havia destruído, de que há na saúde uma dimensão de perigo não identificado e não apenas de risco calculado.

Esse perigo chegou-nos da mobilidade internacional dos nossos grupos sociais mais cosmopolitas. Os primeiros casos conhecidos foram trazidos por quem viajou, em particular por motivos de lazer, tendo-se identificado as férias na neve ou por motivos profissionais, com a deslocação a feiras. Depois, como sabemos, criou-se a ilusão de que o vírus era socialmente cego e interclassista.

A estratégia adotada propôs-nos soluções aparentemente universais, como ficar em casa e passar para o teletrabalho. Alguns, muitos de nós, puderam ficar em casa, adaptar as suas vidas, estar até mais perto dos filhos, sofremos por não nos podermos visitar, mas compreendemos que havia um bem maior.

Mas rapidamente percebemos que a propagação seguia a desigualdade socioeconómica no país. O estudo sobre as desigualdades da Escola Nacional de Saúde Pública não podia ser mais claro, está divulgado desde antes da abertura que começámos a ensaiar em junho e cito: “A precariedade no trabalho, remuneração desadequada face ao custo de vida e a dificuldade de acesso a apoios sociais podem impedir que as pessoas se resguardem mais nas suas habitações, para se protegerem do vírus. Trabalhos que não podem ser realizados à distância (teletrabalho), ou a necessidade de continuar a fazer pequenos trabalhos para garantir a subsistência a curto prazo, sujeitam as pessoas a uma maior exposição à infeção. Este facto é confirmado pela análise do número de casos por concelho em Portugal (...), onde se verifica que os concelhos com menor taxa de desemprego, maior média de rendimento e menor desigualdade de rendimento (medida pelo índice de Gini) são também os locais onde existe menor número acumulado de casos.”

Não percebo porque nos mostramos surpreendidos quando o ressurgimento da covid-19 acontece nas periferias residenciais pobres da Área Metropolitana de Lisboa. Se a estratégia do confinamento estava certa, o vírus transmitir-se-ia mais lentamente, mas as cadeias de transmissão afetariam mais os que não puderam ficar confinados. E assim foi.

Enquanto muitos de nós – que imaginávamos na nossa bolha ilusória ser todos, mas eramos afinal os mais privilegiados e uma parte das classes médias – ficámos em casa, o nosso bem-estar dependia dos muitos que tiveram que continuar a sair de casa todos os dias, apanhar transportes coletivos, ser transportados nos veículos das suas empresas e alguns, muitos mais do que a sua invisibilidade mediática sugere, que o fazer em bairros onde a ausência de contacto é impossível, em habitações onde as condições são precárias. Na altura foram até elogiados porque nos encheram as prateleiras dos supermercados, nos mantiveram as ruas limpas, as obras em construção, nos trouxeram a comida a casa. Mas vivem com o perigo de cujo medo nos resguardámos.

Muitos desses, se não forem trabalhar esta semana, não têm dinheiro para viver na próxima. Podíamos ter ajudado alguns deles, cujo trabalho não fosse mesmo necessário e vivem em situações precárias, estendendo-lhes a proteção social, mas negámos-lhes até agora a proteção temporária, com algo como o subsídio de desemprego universal temporário que propus no início de abril, o Governo não achou necessário e em versão mais completa e aperfeiçoada o Bloco de Esquerda levou à Assembleia da República.

Os mais pobres estão mais expostos ao vírus pelas suas condições de existência mas também porque a nossa estratégia de combate ao vírus os manteve mais expostos. Não fiscalizámos os locais de trabalho, não monitorizámos os transportes dos trabalhadores e não reforçámos devidamente os transportes públicos nas horas a que essas pessoas os usam e tudo isso foi notícia.

Mas quando o vírus desceu na escala social, a abordagem começou a mudar também no plano comunicacional face à doença. A compaixão pelos atingidos está a ser substituída pela sua culpabilização. No bairro da Jamaica já não vimos os polícias simpáticos e pedagógicos que aconselhavam os automobilistas na Ponte 25 de abril, nem os encerramentos de estabelecimentos fora das câmaras de televisão. Vimos – porque deliberadamente nos quiseram mostrar – conferências de imprensa policiais e corpo de intervenção a postos.

Regressou o discurso da culpabilidade dos pobres, erigidos de novo a classes perigosas. De repente, a linha de comunicação passou a ser a de que há uns concelhos onde há pândega universal, festas ilegais, idas ao café e consumo de álcool.

Há séculos que os poderes instituídos tratam assim os problemas de saúde quando descem na escala social. O mundo mudou muito, mas lembrei-me de novo do fantástico livro de Engels sobre a situação da classe trabalhadora em Inglaterra em meados do século XIX.

As freguesias da terceira velocidade de desconfinamento são também as da terceira classe do barco em que viajamos. São em concelhos diferentes mas são todas contíguas. São a mancha periférica pobre e precária, de trabalhadores, imigrantes e bairros sociais. E não me surpreenderia se aparecessem a seguir as suas irmãs gémeas da Margem Sul do Tejo.

É altura de olhar mais para os locais de trabalho destas pessoas, para as condições em que têm que lá chegar, para as condições em que vivem. Há um sinal positivo na criação do programa chamado dos Bairros Saudáveis, se ele se dirigir à habitação, aos bairros e ao emprego e não à moralização dos habitantes dos bairros.

Mudar agora as condições estruturais de vida dos precários e pobres dá mais trabalho mas é mais eficaz e mais justo do que voltar a expandir a ideia das classes perigosas e descontroladas ou de que os pobres adoecem porque fazem muitas festas. Estes nem foram sequer fazer ski.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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