Morreu Milton Glaser, criador de I love NY e co-fundador da New York Magazine

O designer gráfico que, com os seus posters, logótipos e arte gráfica, ajudou a espelhar e, ao mesmo tempo, definir o imaginário das décadas de 1960 e 1970 morreu no dia em que completava 91 anos.

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Milton Glaser foi o primeiro designer gráfico a ser distinguido nos Estados Unidos com a Medalha Nacional das Artes DR

Milton Glaser era típica e inequivocamente nova-iorquino, ou seja, era um filho de imigrantes – no caso judeus húngaros, que o viram nascer a 26 de Junho de 1929. Era um nova-iorquino que cedo descobriu que, apesar de a sua cidade ser um mundo, havia todo um outro mundo lá fora para compreender e com que se enriquecer. Percebeu-o no tempo passado em Bolonha, em 1952. Regressado a Nova Iorque, iniciou um percurso que fez dele um dos mais célebres e reputados designers gráficos mundiais: é dele o logótipo “I love New York”, com o coração a significar o verbo da frase, foi ele que, inspirado em Duchamp, criou o poster definitivo do Bob Dylan da década de 1960 – perfil a negro, cabelo a expandir-se em caracóis psicadélicos.

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O famoso logótipo I love NY criado por Milton Glaser DR

Nonagenário, continuava a trabalhar diariamente no seu atelier “à procura de qualquer coisa que não soubesse antes”, como afirmou numa entrevista de 2019. Um par de anos antes, confessava: “Se alguma me vez me reformar, espero morrer no dia seguinte”. Morreu antes disso, esta sexta-feira, 26 de Junho, no dia em que cumpria 91 anos. Foi vítima de um ataque cardíaco e de falência renal, avançou a sua mulher, Shirley Glaser, citada pelo New York Times.

O trabalho pelo qual será mais recordado nasceu de um impulso. Estávamos em 1977 e o município de Nova Iorque fora em seu auxílio para uma campanha de promoção turística da cidade, então mergulhada numa grave depressão económica e com altas taxas de criminalidade. Glaser acedeu ao pedido, prescindindo de pagamento, e, nas traseiras de um táxi, rabiscou num guardanapo aquelas três palavras (“I” e “New York”), intercaladas por um coração, que passariam a ser eternamente associadas à cidade e adaptadas a muitos outros lugares e circunstâncias mundo fora – o guardanapo original está actualmente à guarda do MoMA.

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Ilustração para a série Mad Men DR

“Ainda hoje me surpreende quão omnipresente ainda é [o logótipo]”, confessava numa das entrevistas disponíveis no seu site oficial. “Gostava que a minha mãe ainda estivesse viva para o ter visto, porque teria visto reflectida nele a sua fé em mim. Para além disso, é apenas algo que fazemos e que depois escapa completamente ao nosso controlo”.

Quando criou o famoso logótipo, Milton Glaser já tinha um percurso longo no mundo da ilustração e do design. Bastante longo, na verdade, se recuarmos ao início de tudo, à descoberta da vocação, chamemos-lhe assim. “Não sei o que significa ganhar interesse pelo design. Sempre gostei de fazer coisas, o que julgo ser o equivalente a ganhar interesse pelo design”, contava à Creative Review em 2019. “Descobri o desenho através do meu primo, que veio a minha casa fazer de babysitter quando eu tinha cinco anos e desenhou um cavalo para mim. Compreendi que podíamos criar vida e, nesse momento, decidi que iria passar a minha vida a observar e a criar vida”.

Licenciado pela Cooper Union for the Advancement and Science And Art, passaria depois em Bolonha, em 1952, ao abrigo de uma bolsa de estudo, um período fundamental da sua vida. “A minha viagem a Itália fez-me perceber o pouco que sabia sobre tudo: comida, arquitectura, vida, amizade. Na presença de informação gloriosa, de personalidades e relíquias, comecei subitamente a perceber como era restrita a minha visão do mundo, quão pouco compreendia, e as muitas ideias preconcebidas que tinha”. Em Bolonha, guiado pelo artista Roberto Morandi, que citaria como inspiração durante toda a vida, encontrou os fundamentos do seu trabalho: “uma procura séria, comprometida” e que não seja guiada “pelas necessidades insaciáveis do ego e pela procura de dinheiro”.

"Descartar a palavra ‘arte'"

O seu percurso profissional foi iniciado nos Push Pin Studios, que co-fundou em 1954 e que se revelaria um espaço de liberdade e de afirmação de uma nova estética, cuja sensibilidade acolhia também a influência das artes populares, dos cartoons com que os seus fundadores haviam crescido, propondo uma reinterpretação moderna das linguagens clássicas. Tal frutificaria principalmente na década seguinte, aquela em que co-funda a New York Magazine (1968), que se tornou uma revista de referência muito por culpa do design criado por Glaser e pelas ilustrações que desenhou para as suas capas — abandona a revista em 1977, assim que esta foi adquirida pelo magnata Rupert Murdoch. Dois anos antes, o supracitado poster que desenhou para acompanhar o álbum Bob Dylan Greatest Hits, em que recuperou um Auto-Retrato de 1957 de Marcel Duchamp, cruzando-o com art noveau, tornava-se uma das imagens ícone da década. Firmando-se como nome fundamental da ilustração e do design pela forma como, ao mesmo tempo, capturou e definiu o espírito dos anos 1960 e 1970, seria o autor de centenas de posters para os mais diversos fins: exposições, concertos, museus, campanhas pelos direitos sociais e em defesa da ecologia.

Desconfiado da noção do grande artista torturado pelo génio e trabalhando para a imortalidade, bem como da distinção entre alta e baixa cultura, propunha numa entrevista “descartar a palavra ‘arte’ e substituí-la com a palavra ‘trabalho’”: “Um facto simples encoraja-me a fazer esta proposta: valorizamos mais um bom tapete, um livro bonito ou um bom poster que qualquer má pintura”. Apesar da sua natureza optimista, criticava a abertamente a forma como, na sua área de trabalho, tal como no mundo em geral, evoluíramos para um estado em que o lucro é a medida de todas as coisas. “O mundo é moldado por publicidade, marketing e capitalismo, e a ideia de a rentabilidade ser o único atributo pelo qual vale a pena lutar é monstruoso”, desabafava à Creative Review. “Antes, havia espaço para a qualidade da beleza e para o desenvolvimento de uma comunidade de crenças comuns. [Agora] O único critério para avaliar o que faço é o aumento das vendas, e isso é desprezível”.

Na mesma entrevista, queixava-se da perda de sentido de comunidade, defendendo que, na sua profissão, é fundamental ter em conta a existência de três vectores: “Tu, o cliente e o público. Nunca és tu primeiro, és tu em relação com a tua comunidade. Essa é a grande peça em falta nos nossos tempos. Que a ideia do proveito próprio e o narcisismo sejam aceites destruiu a textura do intercâmbio humano e isso tem que ser recuperado”.

Aplicando essa ética à diversidade de trabalhos que desenvolveu, de ilustrações feitas para supermercados a posters para a série Mad Men, da criação do logótipo das bandas desenhadas que a DC Comics publicou entre 1976 e 2005 àquele que inventou para a cerveja Brooklyn Brewery, em 1988, cujo inesperado sucesso lhe garantiu independência financeira até ao fim da vida, Milton Glaser tornou-se um mestre no seu campo, sendo o primeiro designer gráfico distinguido nos Estados Unidos com a Medalha Nacional das Artes – foi-lhe atribuída em 2013 por Barack Obama.

A reforma, como escrevemos acima, nunca esteve nos seus planos. Tinha demasiada curiosidade pelo mundo para contemplar tal cenário. Um ano antes de morrer, dizia: “Tive uma vida maravilhosa, uma carreira maravilhosa e ainda estou a meio dela. Ainda estou a tentar descobrir o que é que não conheço”.

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