Os médicos – Il sorpasso

Que solução parece lógica? Abrir a instituições privadas o ensino da medicina, afinal alargar o conceito existente para o último ano de prática clínica do mestrado integrado de medicina, contemplado por necessidade óbvia das escolas estatais.

Estranha esta associação que me ocorreu quando pensava na montanha russa que hoje se perfila perante os médicos em Portugal.

Il sorpasso (a ultrapassagem) é um filme de Dino Risi, datado de 1962, que vi e me impressionou nos meus vinte anos. Trata-se de uma história que envolve um homem de meia idade, frio e despreocupado de sentimentos, também de bom sorriso e aparência cativante, que fascina um jovem estudante, convidando-o a viajar por Itália no seu carro desportivo.

Porquê esta associação de pensamento?

É comum dizer que em Portugal há médicos a mais, infelizmente mal distribuídos pelo país. A Ordem dos Médicos refere haver 56.200 médicos inscritos, números que referidos a 100.00 habitantes, nos colocam em terceiro lugar no ranking europeu de cobertura médica. Contudo, o bastonário da Ordem, Miguel Guimarães, afirmou, em Setembro passado, que tínhamos menos 5000 médicos do que era necessário para uma cobertura eficaz do sistema nacional de saúde. Esta contradição, habitual nas conversas opinativas, deverá ter alguma moderação, socorrer-se de factos reais, não embarcar em ideologias ou encontros de ocasião.

Nessa intervenção, Miguel Guimarães afirmou que mais de metade dos médicos inscritos na Ordem tinha idade superior a cinquenta anos, o que lhes permitia não fazer serviço de urgência nocturno, agravando-se a situação a partir dos cinquenta e cinco anos, altura em que qualquer serviço de urgência passa a ser facultativo. Não terá sido abordado o número de médicos inscritos que já não exercem a profissão, situação possível, para mais numa população envelhecida como é a nossa. Que reflexo podem ter estes dados na vida dos portugueses?

Se olharmos para a discrepância que existe entre os 56.200 médicos inscritos na Ordem e os 29.000 que trabalham no SNS, e a preferência que a grande maioria dos médicos tem pela função pública, muito depressa chegaremos à conclusão que o terceiro lugar que ocupamos no ranking de cobertura médica europeia está muito longe de ser verdadeiro. Para os incrédulos, talvez ajudem no pensamento situações correntes, como as que ocorrem no Serviço de Neonatologia do Hospital de Faro, onde os médicos, numa carta enviada à Administração do Centro Hospitalar Universitário do Algarve, dizem estar a “trabalhar num estado de exaustão, transgredindo os limites de segurança e boas práticas médicas”. Acresce, ainda, que devido à falta de recursos humanos no Hospital de Portimão, a urgência de pediatria é obrigada ao encerramento em sucessivos dias da semana.

Assim sendo, será só uma questão de posicionamento dos médicos no país, ou será uma real falta de médicos?

Com a covid-19 que nos apoquenta, parece óbvio que os médicos, e outros profissionais de saúde, estão exaustos pelo excelente trabalho que têm prestado, sendo esse trabalho realizado sobretudo em hospitais centrais, como parece óbvio, não correndo a mensagem que uma melhor distribuição dos médicos seria a resolução dos problemas.

Assim, como ter mais médicos aptos para o exercício das funções necessárias?

O país vive com escolas médicas estatais onde cerca de 1800 alunos tentam adquirir cognição e destreza para as práticas clínicas que a profissão exige. Este número resulta do numerus clausus das instituições, a que se somam os lugares que chamaria de “excedentes”, constituídos pelos licenciados noutras áreas, licenciados em saúde, candidatos oriundos da Madeira e dos Açores, filhos de diplomatas, militares, portadores de deficiências e atletas de alta competição, sendo o produto final claramente acima das capacidades formativas das actuais Faculdades de Medicina.

Enquanto regente da Pediatria (prática clínica) na FMUP, desde 2004 até à jubilação, confrontei-me com mais de trezentos alunos por ano para as sessenta e uma camas pediátricas afectas ao Hospital de S. João. Que fazer? Distribuir os alunos por hospitais afiliados, incluindo os privados, onde fosse possível adquirir conhecimentos adequados para a prática clínica. Confiava-se nos colegas das diferentes instituições, que no final davam uma nota curricular ao aluno, quase sempre muito perto da classificação máxima. Regressavam com a incumbência de fazer uma história clínica de um doente (o exame não constava na aferição de conhecimentos). Nas outras áreas de ensino médico o processo era, e continua a ser, o mesmo, os alunos no último ano do mestrado de medicina são despejados nos hospitais afiliados, para adquirir a exigida destreza médica.

Um outro aspecto diz respeito à preparação dos docentes universitários, tendo em conta que a carreira académica tem atraído progressivamente menos candidatos. O estatuto da carreira docente universitária (ECDU), aprovado em 2009, definia que os docentes universitários deveriam estar na sua maioria (entre 50% e 70%) no topo da carreira. No entanto, segundo o Perfil do Docente do Ensino Superior referente ao ano de 2018, apenas 20,4% se encontram na categoria de catedrático ou de associado. Assim, como prevê o estatuto, as instituições podem contratar para a prestação de serviço docente individualidades nacionais ou estrangeiras, de reconhecida competência científica, pedagógica ou profissional, cuja colaboração possa ser de interesse e necessidade inegáveis para a instituição de ensino superior em causa. Este desinteresse que parece estar a aumentar na carreira universitária ligada ao ensino médico, tem origem nas poucas vagas que existem na progressão da carreira a partir do doutoramento.

Que solução parece lógica? Abrir a instituições privadas o ensino da medicina, afinal alargar o conceito existente para o último ano de prática clínica do mestrado integrado de medicina, contemplado por necessidade óbvia das escolas estatais. Esta abertura seria benéfica para os alunos e para os docentes, abrindo para estes últimos uma perspectiva de evolução na carreira e de enriquecimento de conhecimentos. Não parece razoável que cerca de 700 alunos de medicina estejam no estrangeiro, por falta de vaga em Portugal. Para além da separação familiar, que deveria ser tomada em conta, acresce o custo para as famílias e a exportação de dinheiro, que deverá ser considerado entre 18.000 e 25.000 euros, por ano e por aluno. Por outro lado, parece desperdício que as actuais Faculdades de Medicina doutorem dezenas de profissionais por ano, fechando portas a uma evolução futura. Não está em causa a necessidade de obrigar instituições privadas a ter o mesmo grau da exigência que é pedida às instituições estatais, talvez, até, ter em conta que essa exigência não pode ser a que está no papel para as privadas e a que decorre na prática em algumas instituições estatais.

Porque me lembrei do il sorpasso quando pretendi falar dos médicos? Talvez pela sedução que o governo gostava de ter para com os médicos e não consegue, um movimento de afectividade que se desdobra em arrogância na implementação de decisões, uma necessidade de imprimir um ritmo que não sofra contestação, que satisfaça quem o escolheu. Cativações na saúde ou contrafacção de salários são pormenores que estão em estudo e se resolvem de boa fé. Tal como no filme, o rastilho já está aceso, tenhamos a esperança que o precipício não esteja ao dobrar da curva.

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