Os meus avós eram racistas. Eis como segui em frente de cabeça erguida

Os meus avós adoravam tirar fotografias, mas não há fotografias deles comigo ao colo quando era bebé. Eles não estiveram presentes no meu nascimento, no meu baptismo ou em qualquer um dos meus aniversários.

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A autora do texto, à esquerda, com os pais e os irmãos CORTESIA CAROLYN COPELAND

Ao longo dos anos hesitei em partilhar publicamente a minha história por medo de embaraçar ou ferir pessoas da minha família. Mas, com as manifestações que estão a acontecer por todos os Estados Unidos, depois do assassinato de George Floyd por um agente da polícia, sinto que nunca foi tão importante como agora revelar a minha experiência pessoal com o racismo e explicar as diferentes formas como este tem mostrado o seu rosto no seio da minha família. O tempo de “passar entre os pingos da chuva” acabou.

Assim que a minha mãe branca começou a namorar com o meu pai negro, no final dos anos de 1980, o pai dela deserdou-a. A partir de então, por ordem do meu avô, os meus pais foram banidos de todas as reuniões familiares. A minha avó, embora dissesse desde o início que era contra a ideia, cumpria os desejos do meu avô. E nenhum deles assistiu ao casamento dos meus pais.

Uma vez, depois de ouvir falar de um grande acontecimento familiar que tinha acontecido não muito longe da nossa casa, na zona da Baía de São Francisco, no estado da Califórnia, a minha mãe confrontou a minha tia sobre o facto de esta não ter convidado a nossa família.

“Tínhamos de tomar uma decisão”, disse-lhe a minha tia. “E decidimos que queríamos que os nossos filhos tivessem os avós na vida deles.” Por outras palavras, foi mais fácil e mais confortável suportar o racismo do que ter-nos lá. Para ser justa, alguns membros da família confrontaram os meus avós com a sua atitude, mas nada disso os impediu de cumprirem as regras do meu avô.

Ao fim de alguns anos, a minha avó fez pequenos esforços para nos visitar. Uma vez, a minha mãe levou-nos a vê-la, em Novato, na Califórnia, onde morava. Eu e o meu irmão mais velho sentamo-nos no carro enquanto a nossa mãe conversava com a nossa avó no passeio. Depois de dizer à minha mãe que precisávamos de ir à casa de banho, a minha avó despediu-se dela para que ela nos pudesse levar à bomba de gasolina mais próxima. É que o meu irmão e eu não tínhamos autorização para entrar em casa dela. Esta é a primeira recordação que tenho da minha avó.

Carolyn, mais da avó negra do que da branca

A minha avó e eu temos o mesmo nome próprio. Partilho o nome com as minhas avós brancas e negras, que, por coincidência, tinham o mesmo nome. Os meus pais dizem que eu tinha o nome de ambas, mas tenho a certeza que se a mãe do meu pai tivesse um nome diferente, o meu nome não seria “Carolyn”.

A minha relação com os meus avós mudou depois de uma cirurgia às costas que deixou o meu avô acamado por algum tempo, durante o qual ele terá tido uma epifania. Não posso afirmar o que foi que o levou a abrir um pouco a mente, mas a partir daí fomos autorizados a ir a eventos familiares.

As coisas começaram a mudar lentamente, mas para mim e para a minha família mais próxima, o racismo era o elefante na sala. Os meus irmãos e eu até começámos a fazer disto uma brincadeira e, durante anos, sempre que íamos a grandes reuniões familiares, jogávamos um jogo a que chamávamos “encontrar os negros”. Era um jogo impossível porque aquele lado da nossa família nunca convidava negros.

E o racismo não acabou quando nos foi dada luz verde para participarmos em eventos familiares — tornou-se apenas menos óbvio. Houve comentários e sugestões ao longo dos anos do meu avô, como quando ele me apresentava a alguém como “Carolyn” (à mesma pessoa, os meus primos eram apresentados como “o meu neto” ou “a minha neta”). Eram coisas pequenas, mas não passavam despercebidas.

Na minha adolescência, decidi que era altura de clarificar a situação. Sabia que tinha idade suficiente para ter uma discussão madura sobre racismo e pensei que teria uma oportunidade de sensibilizar a minha avó. Desabafei os meus sentimentos num e-mail. Contei-lhe como as suas acções me prejudicavam, como eu ainda não me sentia totalmente aceite por ela e pelo meu avô, e como não conseguia compreender porque é que alguém que afirma não ser racista cumpria as ordens do seu marido para rejeitar os seus próprios netos. Olhando para trás, sei agora que enviar um e-mail não foi o mais acertado.

Depois de não ter recebido resposta, decidi ligar-lhe. Ela disse, então, que não chegou ao fim do meu e-mail e que os eventos que descrevia “aconteceram há muito tempo” e “não precisamos de falar sobre isso”. Foi o fim da discussão.

Em conversas posteriores com membros da minha família alargada, reparei que a culpa foi atribuída exclusivamente ao meu avô, como se a minha avó e os irmãos da minha mãe não fossem cúmplices. A maioria deles arranjou desculpas para os actos da minha avó.

Entre o racismo e o silêncio

Não foi decisão da minha avó excluir-nos, mas, para mim, ela foi pior do que o meu avô, porque sabia que o que estava a fazer era errado. Eu podia justificar o meu avô como um velho racista, mas a minha avó sabia que o racismo era errado e mesmo assim afastou-nos. Outros membros da minha família também. Não estavam dispostos a questionar as suas próprias acções ou a sacrificar a sua vida confortável de forma a nos incluir. Ninguém assumia esta batalha como sua.

No funeral da minha avó, em 2017, os meus irmãos e eu mantivemo-nos imperscrutáveis enquanto os nossos primos choravam sobre a sua sepultura e relembravam como ela tinha sido uma avó maravilhosa. Naquele momento, tudo o que eu podia sentir era ressentimento. Eu nunca conheci a avó que eles descreveram. Nem tinha qualquer recordação feliz com ela.

Também fiquei frustrada comigo própria por não me ter esforçado mais em falar com ela sobre como me tinha sentido durante todos aqueles anos. Não ter insistido nessa conversa com a minha avó é um dos meus únicos arrependimentos na vida.

Depois do funeral, eu sabia que, se quisesse encontrar alguma paz, precisava de encontrar o momento certo para tentar ter uma conversa com o meu avô.

Em 2019, conduzi durante duas horas para o ver. Descrevi calmamente a dor que ele causou à minha família e disse-lhe que nunca tinha sentido que ele me amasse. Ele não negou a maioria dos acontecimentos que mencionei, mas insistiu que não era racista porque, no passado, tinha contratado pessoas negras para trabalhar para si.

Perguntei-lhe se tinha algum arrependimento. Não tinha. Ele nunca pediu desculpas e morreu alguns meses depois da nossa conversa.

O que eu queria era um reconhecimento do que tinha acontecido e que era errado. O silêncio é ensurdecedor para aqueles que estão do lado de cá do racismo.

Cortesia Carolyn Copeland
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Cortesia Carolyn Copeland

Ele tinha sido uma desilusão para mim toda a vida, por isso não fiquei surpreendida com a nossa conversa. Na verdade, senti-me bem por ter dito o que queria. De certa forma, foi libertador.

A questão é: se os meus avós me tivessem pedido, eu tê-los-ia perdoado. Creio que a minha avó carregava alguma vergonha, mas nunca o disse. Eu tê-la-ia respeitado mais se ela o tivesse admitido.

Esperava-se que todos avançássemos como se nada tivesse acontecido, mas este nível de racismo [dos familiares directos] é demasiado pessoal, profundo e doloroso para alguma vez esquecer.

Não creio que uma pessoa possa alguma vez recuperar totalmente de uma experiência como esta, mas é possível evitar que ela tome conta da sua vida e evolua para a amargura. Apesar da minha relação praticamente inexistente com os meus avós, tive uma abundância de amor na minha vida em que fui capaz de me apoiar. Consegui até, ocasionalmente, encontrar forma de me rir das suas vidas mesquinhas.

Aprendi algumas lições difíceis sobre como é essencial falar alto, em vez de tentar sempre manter a paz. Passei demasiados anos à espera que os meus avós abordassem o tema que queria desesperadamente discutir com eles, porque estava preocupada com o facto de isso os fazer sentir desconfortáveis ou defensivos.

Nunca vou compreender o preconceito dos meus avós e a complacência de outros membros da família, mas eis o que descobri: falar e estar cara a cara com a causa dessa dor deu-me o que eu precisava para finalmente ganhar uma certa paz e capacidade de aceitação — e manter a cabeça erguida.

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