Dia das Vítimas do Terrorismo em Espanha assente na mentira de quem matou Begoña

A bebé Begoña Urroz nunca foi a primeira morte da ETA, que só teve a primeira acção em 1961. Mas 60 anos depois, o que se confirmou com provas é que o ex-primeiro-ministro socialista Felipe González criou um grupo paramilitar para travar uma guerra suja contra a organização separatista basca.

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Estação de comboios de Amara, San Sebastián, onde aconteceu o atentado em 1960 DR

O Partido Socialista Operário Espanhol juntou-se, esta terça-feira, à direita e à extrema-direita para travar uma investigação parlamentar ao papel do antigo presidente do Governo Felipe González na criação da organização paramilitar Grupos Antiterroristas de Libertação (GAL), que usou métodos ilegais para combater a ETA com meios do Estado. Na semana em que se assinalam 60 anos sobre o assassínio da bebé Begoña Urroz (27 de Junho), que um antigo ministro de González inventou como sendo a primeira vítima da organização separatista basca e cuja data da morte é, desde 2010, em Espanha, o Dia das Vítimas do Terrorismo, PSOE, PP e Vox impediram a criação de uma comissão da verdade sobre os GAL.

A proposta de criação da comissão de investigação a González tem por base um documento desclassificado dos serviços secretos norte-americanos, datado de 1984, que vem confirmar o que muito se tem dito ao longo dos anos: o grupo paramilitar que praticou terrorismo de Estado contra a ETA entre 1983 e 1987 foi criado com anuência do então chefe do Governo espanhol.

No documento secreto agora acessível, intitulado Espanha: terrorismo basco e resposta governamental, a CIA escreve que “Felipe González acordou formar um grupo de mercenários, controlado pelo exército, para combater fora da lei os terroristas”, diz o partido basco Bildu, ligado à esquerda abertzale (independentista) nos fundamentos para o pedido de investigação ao antigo líder socialista.

A bebé Begoña Urroz, de 22 meses, vítima da deflagração de uma bomba na estação de comboios de Amara, em San Sebastián, foi a única morte (tirando um bombista que morreu na colocação de um artefacto) provocada por um grupo antifranquista efémero relacionado com Portugal, o Directório Revolucionário Ibérico de Libertação (DRIL), cuja grande acção que fica para a História é o assalto ao paquete Santa Maria, levado a cabo por um comando liderado por Henrique Galvão.

O DRIL, um dos muitos grupos de vida efémera que surgiram para lutar contra as ditaduras de Franco e Salazar, sempre teve mais actividade espanhola que portuguesa, tal como o próprio general Humberto Delgado, afirma nas suas memórias.

“Só muito mais tarde, quando o Santa Maria chegou ao Brasil, é que vim a saber que nenhum dos portugueses nem o próprio Galvão sabiam exactamente o que era o DRIL. O conhecimento que ele tinha resumia-se ao nome um tanto dramático e às actividades terroristas isoladas que levara a cabo em Espanha. De modo algum correspondia às pretensões dos seus chefes, que, à chegada ao Recife, declararam ter 2500 comandos suicidas. Exageraram, mesmo tendo em conta a ‘fantasia’ ibérica.”

O El País desta quarta-feira traz mais uma confirmação de que a tese defendida, em 2000, por Ernest Lluch, num artigo no El Correo, de que a bebé seria a primeira vítima da ETA, e que depois foi sendo difundida como verdade em Espanha, já naquela altura era facilmente posta em causa pelas provas existentes que ligavam o atentado a uma retaliação do DRIL pela tortura e fuzilamento de um dos seus membros, Antonio Abad.

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Begoña, numa foto de família DR

Para Lluch – ministro de González quando os GAL foram criados –, a primeira vítima da organização separatista basca não tinha sido José Pardines, o guarda civil assassinado em 1968, mas a bebé Begoña Urroz Ibarrola. O que não só seria a primeira morte causada pela organização, fundada em 1958 para combater a ditadura de Franco e lutar pelo povo e a língua basca, como a sua primeira acção violenta, antes da tentativa fracassada de fazer descarrilar um comboio cheio de franquistas que ia a San Sebastián comemorar o aniversário do golpe de Estado de 1936 que deu início à Guerra Civil Espanhola.

Historiadores como Santiago de Pablo, Iñaki Egaña, Gaizka Fernández Soldevilla, bem como o jornalista Xavier Montanyà, que teve acesso aos arquivos desclassificados da polícia, não encontraram qualquer ligação à morte de Begoña Urroz, e todas apontam para o DRIL. Aliás, o regime franquista, nunca acusou a ETA de estar por trás do atentado. Começou por dizer que tinham sido “elementos estrangeiros, em cooperação com separatistas bascos e comunistas espanhóis” (uma óbvia atribuição tendo em conta que o atentado ocorrera no País Basco), antes de chegar à conclusão que se tratava de obra do DRIL, que tinha levado a cabo outros atentados no mesmo período.

Em 1960, a ETA não só não tinha explosivos para usar (a tentativa de descarrilamento foi feita com a deformação dos carris e nem feridos provocou), como o conjunto dos seus activistas eram dois: Juan José Etxabe e Jon Ozaeta, que se limitavam a pinchar paredes com dizeres independentistas em San Sebastián. Foram presos em Setembro desse ano e em nenhum momento das acusações se fala em atentados bombistas ou uso de explosivos. A primeira bomba colocada pela ETA foi a 14 de Fevereiro de 1964 e não explodiu; a que explodiu, sim, foi a colocada no dia seguinte, na sede do Governo Civil de Iruñea.

Segundo o historiador Iñaki Egara, num artigo escrito em 2010 para o Gara, Lluch – que acabaria assassinado pela ETA uns meses depois do seu artigo –, baseia a sua tese num livro do vigário-geral da diocese de Guipúscoa (uma das três províncias do País Basco), La ética para la paz. Los obispos del País Vasco 1968-1992, que, numa nota de rodapé, se refere à morte de Begoña como tendo sido vítima da ETA, assente no prosaico argumento de que isso lhe teria sido transmitido por uma catequista amiga da família.

A investigação a que o El País faz referência esta quarta-feira – de Gaizka Fernández, do Memorial de Víctimas del Terrorismo –, limita-se a confirmar, mais uma vez, que a tese da ETA no atentado de 1960 é mentira e que foi Guillermo Santoro, militante do DRIL, quem colocou a bomba que explodiu a 27 de Junho. Fernández cita um documento da polícia em que a tia da bebé, Soledad Arruti, identifica Santoro a partir de uma série de fotos de membros do DRIL que lhe é mostrada pela polícia.

Vítimas

A Espanha vai manter o 27 de Junho como Dia das Vítimas do Terrorismo, porque seja quem for o autor, Begoña morreu antes de chegar aos dois anos de idade. O que já não se poderá manter é que a organização separatista basca começou a sua luta política contra a ditadura de Franco matando uma criança à bomba. A ETA matou centenas de pessoas até à sua extinção em 2018, mas essa bebé de 22 meses não foi a sua primeira vítima.

Apesar da votação do PSOE desta terça-feira, ao lado da direita e da extrema-direita espanhola, a Associação de Vítimas do Terrorismo, não participará na homenagem que se celebra no Congresso espanhol todos os anos, por ocasião do 27 de Junho. Os seus membros vão ficar à porta para protestar contra o facto de o primeiro-ministro, Pedro Sánchez, segundo a associação, ter permitido a normalização política do EH Bildu, herdeiro, segundo eles, do terrorismo basco.

“Que o senhor pretenda alcançar a investidura com ajuda do fascismo que nos assassinou no País Basco, produz uma náusea infinita. E um profundo desprezo”, disse, em declaração directamente enviada ao primeiro-ministro, José María Mújica, filho de Fernando Múgica, histórico líder socialista basco assassinado pela ETA em 1996.

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