Há sorrisos à janela: fotógrafos ajudam a combater a solidão dos velhos de Lisboa

A iniciativa “Retratos à Janela”, promovida pela Associação Mais Proximidade, Melhor Vida, levou nove fotógrafos voluntários a captar a imagem de alguns dos 120 idosos em situação de solidão com quem trabalha na Baixa e na Mouraria, em Lisboa.

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Vicência Bogalho, de 84 anos, veio à janela mostrar os bordados Hugo Moreira

A porta do pequeno prédio no coração da Mouraria, em Lisboa, abre-se depois do toque à campainha. Do outro lado está um lance de escadas estreitas que se ergue em degraus altos. “Ai, que meninos tão lindos!”, exclama sorridente Luísa Tomaz, do cimo, junto à porta de casa. Com alguma dificuldade, Ana Sousa e Rita Roquette, colaboradoras da Associação Mais Proximidade, Melhor Vida (AMPMV)sobem as escadas, a quem se junta Ana Luísa Murjal, enfermeira de profissão. Mas não são os cuidados de saúde que motivam a sua visita, a lisboeta de 36 anos é também fotógrafa e aliou-se ao projecto “Retratos à Janela”, que ao longo de três dias levou os idosos que a associação apoia às portas e janelas das suas casas para serem retratados por um grupo de nove fotógrafos voluntários.

Aos 92 anos, Luísa Tomaz é uma dos cerca de 120 utentes da AMPMV. Constituída formalmente como IPSS em 2015, a associação trabalha directamente com idosos em situação de solidão e isolamento nas zonas da Baixa e da Mouraria. Alguns não têm família, outros têm, mas está longe. Por isso, as “amigas” da associação são, muitas vezes, a única companhia e forma de esses utentes resolverem os problemas que surgem no dia-a-dia.

“Eu não imagino o que é subir e descer estes degraus com 92 anos”, diz Ana Luísa Murjal, surpreendida. Na ombreira da porta espera a “dona Luísa”, como lhe chamam as técnicas. Há mais de 70 anos que ali mora, mas é natural de Pedrógão Grande, onde gosta de estar porque “o ar é outro”. Vive sozinha desde a morte do marido. O filho emigrou para o Canadá e as visitas à “província” — como chama ao município de que é natural — deixaram de ser a cada duas semanas para apenas uma vez por ano, quando o filho regressa. “Ele é capaz de vir em Setembro, mas eu só acredito quando o vir à minha frente”, diz. A pandemia pode adiar-lhe os planos.

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Luísa Tomaz, de 92 anos, mora há cerca de 70 na Mouraria Hugo Moreira

A associação que a acompanha há cerca de cinco anos anos não se limita a ajudá-la a combater a solidão. “As meninas estão sempre prontas para fazer tudo o que é preciso”, declara Luísa Tomaz. Isso significa levar os idosos ao médico, entregar medicamentos ao domicílio, ajudar com as compras, mas também “resolver um cano roto ou uma fechadura partida”, enumera Ana Sousa. Formada em gerontologia, é uma das oito profissionais que se dedicam a tempo inteiro à causa.

Ao longo das ruas apertadas e escadas íngremes do bairro moram outros utentes. “Na sexta-feira tem consulta. Lembra-se, senhor Miguel?”, alerta Ana Sousa, que se senta numa cadeira à porta de casa. Veio há 30 anos de Angola e não tem família com quem contar. Anda-se mais uns metros e chama-se pelo nome da “dona Vicência”, que vem entusiasmada à janela. Traz consigo os bordados com que ocupa os dias. Aos 84 anos sorri para a lente da fotógrafa que lhe dá indicações para a pose.

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Miguel Paulo, natural de Angola, está em Portugal há 30 anos Hugo Moreira

Da equipa fazem parte profissionais de diferentes áreas, desde o serviço social à psicologia. Com a AMPMV colaboram instituições como a Santa Casa da Misericórdia e as juntas de freguesia, que são “fundamentais” para estabelecer “uma rede de contactos que permita uma melhor resposta” às necessidades do dia-a-dia de cada um dos utentes, esclarece Ana Sousa. 

Combater a solidão com o telefone

O som dos disparos da máquina fotográfica coexiste com os risos de Luísa Tomaz. “Quem diria que depois de velha iria ter tantos amigos”, exclama. Foram esses que, antes de se instalar o período de confinamento, a levaram pela primeira vez ao Oceanário de Lisboa. “Adorei, é muito lindo. E agora uma das voluntárias liga-me todas as semanas”, conta com carinho.

O aumento na frequência das chamadas telefónicas foi uma das formas que a associação encontrou para ajudar a combater a solidão durante o confinamento. Rita Roquette, responsável pela comunicação da AMPMV, explica que a propagação da pandemia veio dificultar a tarefa a que a organização se propõe. “Tivemos de fazer uma readaptação da nossa intervenção, sempre garantindo que todas as necessidades dos idosos eram concretizadas”, sublinha. O que não foi fácil, uma vez que a intervenção da organização se baseia “muito na proximidade”, não fosse esse inclusive o seu nome. 

Em Março, as actividades de grupo e passeios foram suspensos, tal como as visitas ao domicílio, excepto “as situações mais urgentes e inadiáveis”. Agora, passados três meses, a iniciativa “Retratos à Janela” marca o regresso a alguma normalidade, mas sempre sem entrar na casa dos mais velhos. A companhia faz-se pela janela ou à porta e de máscara no rosto.

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Hugo Moreira

Para Ana Luísa Murjal, “é interessante perceber que se pode fazer a diferença num momento e num registo de recordação futura, mas também perceber quão sozinhas estão estas pessoas”. Segundo Rita Roquette, o objectivo principal do “Retratos à Janela” é criar “uma valorização pessoal e uma recuperação da auto-estima” dos utentes. “Algumas dizem que vão vestir um vestido que não usavam há anos, outras que vão maquilhar-se para o retrato que lhes vão fazer”, revela. “Tudo isso resume o impacto destas ideias simples, mas que fazem com que as pessoas acordem ansiosas por um dia diferente”, conclui.

“Uma pessoa acha sempre que já viu de tudo e até sabe que há quem viva em situações difíceis, mas só quando nos deparamos presencialmente com os cenários é que nos apercebemos da realidade”, confessa a fotógrafa voluntária, que já tem experiência na área de solidariedade social em carrinhas de rua. Por isso, a “ética” e o “respeito” devem ser as palavras de ordem quanto aos retratos que fez, acrescenta, revelando não querer expor demasiado as pessoas. Além de Ana Luísa Murjal, juntaram-se a este projecto os fotógrafos José Carlos Nascimento, Nuno Beja, José Fânzeres, Maria Helena da Bernarda, Joana Duarte, Catarina Macedo Ferreira, Onésimo Costa, Pedro Romero e Filipa Bordalo. Mais tarde, as fotografias serão entregues aos modelos.

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Ana Luísa Murjal é enfermeira e fotógrafa Hugo Moreira

Nota: artigo editado às 11h07 de 24 de Junho de 2020. Onde se lia “Constituída formalmente como IPSS em 2005” lê-se agora “Constituída formalmente como IPSS em 2015"

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