Dia 71: podem os pais ser professores dos próprios filhos?

Uma mãe/avó e uma filha/mãe falam de educação. De birras e mal-entendidos, de raivas e perplexidades, mas também dos momentos bons. Para avós e mães, e não só.

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@DESIGNER.SANDRAF

Querida Mãe,

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No outro dia ouvi-a dizer numa entrevista que recomendava aos pais que não fossem professores dos seus próprios filhos. Venho exigir-lhe um Direito de Resposta!

Por que é assim tão horrível ser-se professor dos próprios filhos? Fico com a impressão de que subsiste esse preconceito — principalmente entre os avós —, que leva a encararem com desconfiança, por exemplo, o homeschooling, o ensino doméstico. Que, já agora, é tudo menos a escola online em tempo de pandemia. 

Ainda não perdi a esperança de que esta experiência de confinamento possa abrir a cabeça da sociedade em relação a outros modelos de aprendizagem. Acredite, sei bem que para muitas famílias e crianças a quarentena só veio aumentar o valor que dão à escola e espero que o entusiasmo perdure e leve a que ministério, professores e pais invistam mais numa educação que chegue a todos, e a todos respeite. Mas, como disse o professor Nuno Lobo Antunes numa entrevista recente à RTP, existe uma grande fatia de crianças a quem esta folga da escola física trouxe um enorme alívio. E é preciso olhar para essa realidade de frente. Crianças para quem a escola é tortura, tortura que se repete cinco dias por semana, durante quase 12 anos. Crianças que precisavam de algo que a maioria das escolas não lhes consegue dar: tempo, disponibilidade, e um currículo feito à medida dos seus interesses e capacidades, que tenha em conta as suas dificuldades e a melhor forma de as ultrapassar. Perante estes miúdos, os pais informados, com vontade, disponibilidade e um grau de licenciatura podem solicitar ao Ministério da Educação a possibilidade de optarem pelo ensino doméstico, assumindo a educação dos filhos, desde que sigam o currículo estabelecido pelo ministério, e façam os exames no 4.º, 6.º e 9.º anos de escolaridade.

Ora, aqui é que entra esta ideia subliminarmente presente, de que os pais disponíveis fazem mal aos filhos. Que as crianças só se desenvolvem de forma saudável se estiverem numa escola e fizerem o percurso “típico”.

Mãe, já a estou a ouvir a dizer que a socialização das crianças é muito importante, e é claro que sim, mas não estamos a falar de uma criança a viver numa ilha com os pais, sem acesso a outras crianças. Com apoio e sem o estigma, o homeschooling pode ser apenas uma outra forma de aprendizagem, uma outra forma de socialização (as crianças reúnem-se com outras crianças em ensino doméstico, estão com outros miúdos na biblioteca, em actividades extracurriculares, nos grupos que se organizam para outras actividades, etc.).

Acredite, não estou a tentar vender-lhe o homeschooling como a melhor, nem tão pouco a mais perfeita das soluções, mas é legítima e acho que merece um lugar na nossa cultura, para que todas as crianças possam receber (dentro ou fora da escola tradicional) uma educação de qualidade, que não implique mais perdas do que ganhos.

Acima de tudo é preciso abrir o debate. Como estamos aqui a fazer. Tenho dito.


Querida Ana,

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Obrigada pela tua carta, o debate está lançado e eu confesso que à medida que vou sabendo mais sobre o homeschooling tenho achado a ideia mais interessante.

Mas antes de abrir as hostilidades, preciso de esclarecer a questão com que começas a carta, porque ou não ouviste bem a entrevista, ou então fui eu que não fui suficientemente clara. A Patrícia Teixeira de Abreu, autora de um blogue fantástico chamado “Dislexia day by day”, em que fala da sua experiência com a filha mais nova que tem dislexia, com o intuito de ajudar as famílias de crianças com as mesmas dificuldades, perguntou-me que conselho dava a estes pais. E eu, recorrendo à minha experiência de criança disléxica, respondi com o coração: tudo menos os pais a fazerem os TPC connosco, tudo menos a relação com a mãe e irmãos centrada na “dificuldade”. Falei por mim, que preferi mil vezes uma explicadora do que a minha mãe a mandar-me ler uma e outra vez o mesmo parágrafo, a testemunhar a forma como falhava as contas, levando-me tanto a mim como a ela a perdermos a cabeça uma com a outra, e a acabarmos zangadas e tristes. A Patrícia não concordou comigo. É ela e as irmãs mais velhas da Francisca que trabalham em conjunto, e até o blogue é um projecto de família. Por isso, o meu conselho visivelmente não serve aquela família, o que é uma óptima notícia, mas eventualmente servirá a outra. Ou, não servindo a ninguém, serviu-me a mim — ajudou-me tanto ser vista e valorizada por alguém de fora.

Esta conclusão, leva-me a tomar ainda mais consciência de que a escola como a conhecemos tende a apresentar soluções para a média das crianças, deixando, como tu dizes, muitas delas mergulhadas num dia a dia doloroso, que obviamente contamina o dos pais. O homeschooling era o modelo de ensino dos teus avós, que tinham o privilégio de ter pais com a capacidade de os ensinar, ou que podiam contratar quem o fizesse em casa. O que a escola do século XX fez foi abrir as portas da educação a todas as crianças, independentemente do seu nascimento, mas, obviamente, neste extraordinário esforço de democratização do ensino, perdeu o carácter “feito por medida” do ensino doméstico.

Se as crianças, ou algumas crianças, ganham em ter os pais como professores, e a casa como lugar de aprendizagem? Eventualmente sim, mas confesso o meu receio de que percam a oportunidade de alargar o seu mundo a gente diferente da “sua”, com o que isso tem de enriquecedor; tenho medo que sem essa experiência de diversidade fiquem fechadas num certo gueto, quase clones dos seus pais, com pouco contacto com outras realidades/convicções/visões do mundo. E temo que não se “treinem” na resolução de conflitos com os pares e com os “superiores hierárquicos” que, embora tantas vezes dolorosos, é uma aprendizagem importante para a vida.

Em países onde as crianças vivem mais na rua, brincam nos jardins do bairro e têm uma vida mais independente dos pais, talvez não corram tanto perigo de isolamento, mas em Portugal receio que não façam grandes amigos — ou só os façam com crianças com pais “iguais” aos seus —, tenho medo que impedidos de se afastarem do olhar dos pais, não possam transgredir. E, que os pais não sejam interpelados pela opinião de um professor, não sejam confrontados com o contraditório que também os pode ajudar a crescer e a ser melhores pessoas.

Por outro lado, estou segura de que a escola tem a ganhar com a presença de crianças diferentes, com os desafios que os pais destes miúdos lhe coloca, com a necessidade de sair da sua zona de conforto para encontrar soluções mais criativas, que vão tornar muito melhor a vida de todas as crianças que a frequentam.

Dito isto, todos os dias dou graças por não ter de ir à escola!


No Birras de Mãe, uma avó/ mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram

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