Lições da pandemia: É urgente voltar a olhar para o VIH

Para não deixarmos ninguém para trás, está na hora de renovar o compromisso com o VIH, com as pessoas que vivem com o vírus e com as comunidades mais afetadas.

Seja qual for a doença, é sempre mais barato prevenir do que tratar. A pandemia de COVID-19 veio recordar-nos exatamente isso. Medidas simples e baratas, como a lavagem das mãos, o distanciamento físico e a utilização de máscara, são muitíssimo eficazes na prevenção da transmissão do coronavírus. O mesmo acontece na infeção pelo vírus da imunodeficiência humana (VIH). A utilização de preservativo e a profilaxia pré-exposição (PrEP) – que consiste na toma de um comprimido diário – são muito eficazes para prevenir a transmissão do vírus (e mais baratas do que as máscaras cirúrgicas tão usadas por estes dias). No entanto, em Portugal, continuamos a investir de forma insuficiente nestas ferramentas preventivas.  

Em 2019, os hospitais do SNS gastaram 137 milhões de euros em medicamentos para o tratamento da infeção VIH/sida [1]. Há mais de 30.000 pessoas em tratamento com estes medicamentos [2], mas apenas cerca de 1.200 estão a fazer prevenção com PrEP [3] (ou estavam a fazer, antes do estado de emergência ter sido decretado). De acordo com a Diretora do Programa Nacional para a Infeção VIH/sida [3], seria necessário abranger entre 10 e 15 mil pessoas para, enquanto país, tirarmos “todos os dividendos em saúde pública” deste investimento em prevenção, apontando como barreira o acesso à PrEP exclusivamente através dos hospitais e propondo, como alternativa mais rápida e eficaz, “trabalhar com organizações de base comunitária” que têm maior proximidade das populações mais vulneráveis ao VIH.

Já em relação ao número de preservativos disponibilizados gratuitamente pela Direção-Geral da Saúde, este tem-se mantido, nos últimos três anos, à volta dos 4,9 milhões [2]. Isto significa, em média, menos de 1 preservativo por ano, por cada pessoa com 15 ou mais anos que vive em Portugal. Porém, de acordo com a Direção-Geral da Saúde, cada infeção VIH evitada representa uma poupança de 205 mil euros [4] na despesa com a saúde e uma pessoa em PrEP custa por ano aos preços atuais menos de 200€ em medicamentos. Ou seja, no prevenir é que está o (maior) ganho.

Todavia, a discussão sobre VIH em contexto de pandemia COVID-19 não se esgota no preservativo e na PrEP. Nos últimos meses existiram restrições importantes no funcionamento dos serviços de saúde, colocando muito desafios no acesso ao teste e tratamento do VIH por parte das populações mais vulneráveis (homens que têm sexo com homens, migrantes, pessoas envolvidas em sexo comercial, utilizadores de drogas e, não podemos esquecer, também as mulheres que vivem com VIH). Nalguns casos, houve mesmo interrupção do acesso. Já a anunciada retoma dos cuidados de saúde vai levar meses a recuperar atrasos e adiamentos, alguns deles com consequências irreversíveis, como é o caso das novas infeções. Acresce o impacto da pandemia a nível psicológico, o qual foi particularmente sentido pelas mulheres e pelas pessoas em situação de desemprego.

Se quisermos, de facto, eliminar a infeção VIH enquanto problema de saúde pública até 2030 – um compromisso assumido pelo governo e por 10 municípios portugueses – é, pois, necessário encontrarmos respostas alternativas com urgência.

Com a pandemia reforçaram-se também algumas novas possibilidades. A telessaúde, que ganhou um fôlego renovado, é uma resposta a consolidar e generalizar no SNS. Adequa-se a pessoas empoderadas para gerir a sua saúde e com acesso fácil aos meios tecnológicos necessários, reduzindo as faltas ao trabalho (muitas vezes difíceis de justificar para uma infeção que muitos preferem manter não pública) ou as deslocações (que chegam a ser de centenas de quilómetros). No entanto, no VIH, como na vida em geral, não há uma solução única que sirva todas as pessoas. Pelo contrário. As pessoas mais vulneráveis têm maior dificuldade em negociar a triagem telefónica ou o agendamento de atendimento presencial, a pedido da pessoa. Acresce o facto de muitas se sentirem estigmatizadas e discriminadas nas estruturas formais de saúde e/ou não terem meios para aceder às consultas à distância. Nestas situações, o acesso a consultas abertas, com horário flexível e em contexto de proximidade, são a solução mais adequada para muitas pessoas. Complementarmente, as intervenções entre pares minimizam o isolamento, assim como a depressão e a ansiedade causadas tanto pela COVID-19 como pela infeção VIH.

A pandemia despertou em todos nós o pensamento criativo e a capacidade de implementar respostas inovadoras em curto espaço de tempo. Para não deixarmos ninguém para trás, está na hora de renovar o compromisso com o VIH, com as pessoas que vivem com o vírus e com as comunidades mais afetadas. Escutar as suas preocupações e expetativas e envolvê-las na construção dos programas e serviços que melhor respondem às suas necessidades, assegurando que as políticas de teste, prevenção e tratamento são postas em práticas e que os recursos necessários estão disponíveis.

Subscritores:

Sofia Crisóstomo – Lisboa Sem Sida/Grupo de Ativistas em Tratamentos
Ricardo Fuertes – Lisboa Sem Sida/Câmara Municipal de Lisboa
Cristina Sousa – Abraço
Filomena Frazão de Aguiar – Fundação Portuguesa “A Comunidade Contra a Sida”
Luís Mendão – Grupo de Ativistas em Tratamentos
Maria Eugénia Saraiva – Liga Portuguesa Contra a Sida
Amílcar Soares – Positivo
Isabel Nunes – SERES
Inês Gonçalves – SOL

[1] www.infarmed.pt/web/infarmed/entidades/medicamentos-uso-humano/monitorizacao-mercado/benchmarking/benchmarking-hospitalar/medicamentos-vih/sida
[2] Portugal. Ministério da Saúde. Direção-Geral da Saúde/Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge. Infeção VIH e SIDA em Portugal - 2019. Lisboa: DGS/INSA; 2019
[3] www.sns.gov.pt/noticias/2020/01/20/fast-track-cities-2020/
[4] Norma da Direção-Geral da Saúde sobre Profilaxia de Pré-Exposição da Infeção por VIH no Adulto

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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