Quando bate a sandes-dade

Sentei-me no carro, tirei a máscara e ali, mal-estacionado e com os piscas ligados, comi as bifanas de um trago. E foi nestes propósitos que fui deslumbrado por uma epifania, com quase duas décadas de atraso. Londres até pode ser o meu lar, mas a minha casa será sempre em Portugal.

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Nuno Ferreira Monteiro

Vivo em Londres há quase 20 anos e contam-se pelos dedos das mãos as vezes que fui comer a restaurantes portugueses. Cheguei a frequentá-los para ver alguns jogos de futebol (quando as falcatruas ainda se faziam às escondidas) mas raramente me sentava para comer. Recusava-me a ser desiludido, seja pela má qualidade dos ingredientes, seja pelos preços exorbitantes. Sei bem o valor e o sabor de umas boas amêijoas e custa-me ter que vender um rim para provar um punhado. Para me deparar com a disneylandificação da culinária lusitana, posso sempre dirigir-me ao Mercado da Ribeira quando estiver em Lisboa.

No entanto, admito que não aplico o mesmo tipo de escrutínio a outras cozinhas internacionais e não me importo de pagar 100 vezes o preço de um pho em Hanói por uma mixórdia entregue por um ciclista em regime de contrato “zero horas”. Mas assim é o ser humano: completamente irracional e emotivo. Não sei o que ocorreu, mas na semana passada fui assolado por uma vontade também irracional e emotiva de atulhar as artérias de papos-secos e bifinhos de porco marinados. Liguei a uma portuguese deli local e encomendei duas bifanas carregadas de mostarda.

A caminho do estabelecimento, matutei sobre a razão desta incisiva saudade gastrenterológica por fast food lusitana. Afinal, ainda há três meses tinha gasto a minha quota de viagens anuais a Portugal, uma ou duas semanas antes do fecho das fronteiras. Como que de propósito, esta viagem coincidiu com uma reunião familiar e por isso tive a rara oportunidade de poder estar com quase toda a gente que queria ver. Já estive períodos muito mais longos sem ir à terrinha, por isso nada disto me fazia muito sentido. No entanto, o facto de não saber quando poderei voltar a abraçar a família gera mais ansiedade que o embarque num voo da Ryanair. Cheguei à conclusão de que a incerteza gerada pelo novo coronavírus exacerbou o efeito da distância e do tempo, derrubando a teoria da relatividade para quem está emigrado.

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Diogo M. Geraldes

Voltei carregado com lembranças da minha infância e adolescência: croquetes e amêijoas para congelar, um saco de coentros, patê de sardinha (para degustar sem medo do preço do couvert), azeite genuíno, uma grade de minis (Super, como é óbvio), seis pastéis de nata para os miúdos, Ruffles de presunto, embalagens de Filipinos brancos, Ucal (de garrafa de vidro, por favor), Chocapic e Estrelitas, bacalhau à Brás desconstruído. E café! A dona do estabelecimento deve-se ter imediatamente reformado após a minha saída. Nunca fiquei tão emocionado por gastar meio ordenado em compras.

Sentei-me no carro, tirei a máscara e ali, mal-estacionado e com os piscas ligados, comi as bifanas de um trago. E foi nestes propósitos que fui deslumbrado por uma epifania, com quase duas décadas de atraso. Londres até pode ser o meu lar, mas a minha casa será sempre em Portugal.

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