Violência é querer silenciar o debate

Nas ruas do país e do mundo pede-se justiça e dignidade, num protesto que muitos querem silenciar, apontando o dedo apenas às expressões que o descontentamento adquire, para não se discutir as causas do mesmo.

Até há algum tempo um cidadão vulgar, humanista, que acreditava no anti-racismo, nos direitos LGBTQ+, na protecção ambiental, no Estado Social, no respeitar de credos religiosos, na democracia, liberdade, na igualdade de género, na diversidade cultural, na interdependência colectiva e na equidade como garante da paz social, era alguém decente.

Agora essas aspirações configuram uma figura desordeira, extremista, violenta e radicalizada. Nos últimos dias foi o que se leu e ouviu. E não foi só nas redes sociais. Até o Presidente da República não se coibiu de adjectivar como “imbecil” o episódio da estátua do padre António Vieira.

Referia-se aos rabiscos, mas o problema é passar deliberadamente ao lado de anos de uma muito séria discussão pública sobre a memória colonial que importa fazer. Já na TV, por exemplo, José Miguel Júdice, avisou a população para ter muito medo, muito medo, porque se vivem tempos perigosos de “anarquismo, violência e revolução.”

Quem detém o poder e se auto-intitula “moderado”, posando para a fotografia contra o racismo e a pobreza (mas existe alguém que se afirme a favor?), diz até perceber os protestos, mas não a forma que adquirem. E vai daí em vez de auscultar, julga. Descreve efeitos, mas não faz a análise do que significam. E dessa forma passa-se ao lado da real discussão. Ou melhor: quer-se silenciá-la. E essa é a verdadeira violência.

Nas ruas pede-se apenas mais respeito, justiça e dignidade. Mas querem-nos fazer acreditar que o país e o mundo estão cheios de pessoas desordeiras. Aponta-se o dedo de forma automática às expressões que o descontentamento adquire, mas não se discute as causas do mesmo. Moraliza-se os efeitos da insatisfação e equipara-se o incomparável, a brutalidade policial, as mortes, o racismo estrutural e o desagrado latente e generalizado com as disparidades que se intensificam (no acesso a rendimentos, poder, saber, educação e cidadania), com actos sobre estátuas que, independentemente de poderem ser criticáveis, são apenas uma forma não violenta de fazer ouvir uma mensagem e expor mal-estar. E é dele que tem de se falar.

E se é para falar de violência que a discussão seja séria. A começar por aquele tipo de violência que nunca abre telejornais, sistémica, abstracta, regular e tantas vezes invisível, que provoca desigualdades, exclusão, precariedade, desemprego, doenças, mortes e contextos espaciais onde vive gente defraudada e humilhada. Uma violência assente em modelos económicos que se revelam autodestrutivos e que até “perigosíssimos extremistas” como Felipe González ou Bill Gates, dizem hoje já não servir à larga maioria. A mesma maioria que ouve que os 26 mais ricos têm tanto dinheiro quanto a metade mais pobre da população mundial. Desumanidade em série que, no caso da negritude, é a triplicar, exercida estruturalmente, mas também no quotidiano, ou na romantização ou glorificação colonial acrítica do espaço público.

É isso que agora é rebatido, porque há cada vez mais gente a recusar a escravatura. Não a formal, que essa já lá vai. Mas a que persiste por entre lógicas de dominação e discriminação que se perpetuam. A história não é um processo contínuo. Há anacronismos, resistências e descontinuidades. Está tudo ligado, passado, presente, racismo, exclusões, exploração do planeta e política. E é isso que não se quer discutir, porque é o que pode levar à mudança, que não convém e que tanto assusta os que passam o tempo a acenar com fantasmas. Vivemos um tempo em que é necessário tomar partido. Os apelos à boa consciência já não chegam. É preciso política a sério, aprofundar a democracia, através do reconhecimento de desigualdades, sejam raciais, de género e, claro, económicas, e promover formas de as combater. E isso nada tem de radical. É elementar. É da ordem da decência.

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