As noites que me abriram os olhos

O colchão era de palha. Bem antigo, como as camas de ferro forjado. As paredes interiores eram em madeira. Eram as casas do pátio. Cada uma com o seu número. Nós ficávamos quase todos os anos na 8. Eram as nossas férias. Durante um mês mudávamos de casa. Da nossa casa às casas do pátio ia uma distância de dez quilómetros. Coisa pouca. Agora. Mas, na altura, era como ir até às ilhas Seychelles. As férias de sonho para gente pobre. A classe média e a classe alta tinham um Alfa Romeo ou um Mercedes. Percorriam centenas de quilómetros. Diziam que o mar no Algarve era muito quente. Nós ficávamos pelo mar frio da costa brava e pela ria traiçoeira. Sonhávamos em conversas de jovens com o bigode a querer impor-se, que um dia também haveríamos de ir sentir o caldo que era o mar do Sul. Depois, a conversa terminava com outros sonhos — diziam os ricos que nas terras algarvias havia alemãs, inglesas e holandesas de mentalidade aberta. A temperatura voltava a subir. O João, o Paulo, o Jorge e o Chico deitavam-se nas toalhas decoradas com conchas ou cores vibrantes, e “trabalhavam” para o bronze. De peito virado para o Sol, com o som das ondas grandes e o pregão do homem da batata frita, com pimenta ou sem pimenta, acreditavam que um dia também teriam um Alfa, e, quem sabe, uma holandesa de mente aberta. Eu também sonhava. A minha toalha era só vermelha.

Ao fim do dia, regressávamos ao pátio. A saudável confusão de uma espécie de comuna dava outro colorido ao pôr do Sol. Os cheiros cruzavam-se entre as bifanas da casa 7, o arroz de tomate da casa 3 ou dos carapaus fritos da casa 5. Os mais pequenos esfolavam uma bola contra uma parede transformada em baliza. Nós, os “homens” de bigode ralo, tomávamos banho no tanque, revezando-nos democraticamente na bomba. Em casa, admirávamos o corpo bronzeado. Quanto mais escuro, melhor. Eu depressa adquiria um bronze de invejar. Chamavam-me “o preto”. Ficava bem com uma camisa branca. Depois do jantar, íamos ao picadeiro. Jogar “matrecos”. Lamber um Perna de Pau. E continuar a sonhar.

A parede de madeira deixava ouvir o ressonar do meu pai. Dormia bem. Merecia. Não tinha férias como eu e a minha mãe. Só mergulhava nas ondas grandes ao domingo de manhã. O seu único privilégio. Acredito que o meu pai também devia sonhar. Como nós. Nunca lhe perguntei. Já tinha um bigode farto e bonito. Os seus sonhos seriam diferentes. Devia sonhar com o meu futuro. Também gostava de o ver com uma camisa branca. Ele não necessitava de “trabalhar” para o bronze. Tinha um bronze natural. Dele. Trouxe-o do seu país, uma ilha distante no pacífico. Existem peles bonitas. Com história. A pele do meu pai era uma delas.

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Adriano Miranda

Com a lâmpada de 60 watts acesa, e muitas vezes embalado pelo ressonar do meu pai e pela ronca do farol em noites de nevoeiro, lia até o sono me vencer. Sabia bem ser levado para tempos passados ou futuros. Terras vizinhas ou longínquas. Não necessitava de um Alfa ou de um Mercedes, o mar não era só quente e conhecia gente de todos os continentes. Nas paredes do quarto que foram brancas, e que o tempo se encarregou de as pintar de bege, dava vida a personagens e paisagens. Todas as noites dormia num sítio diferente. Um segredo só meu. 

Existem registos que nos marcam. Lembranças que ficam. Que nos moldam. Que destinam o nosso destino. Foi numa noite estranhamente silenciosa, sem o ressonar do meu pai nem a ronca do farol, que acabei a viagem com o negro António Balduíno por terras de Salvador, no Brasil. Aquele negro foi o meu companheiro de lutas durante umas noites. Na mesa-de-cabeceira estavam outros livros. Agarrei no primeiro, um livro que a Margrit, uma amiga, me ofereceu. O Pai Tomás foi o meu novo companheiro. Viajei até Nova Orleães, nos Estados Unidos. Na primeira noite quase não dormi. Terminei no capítulo XXI – A morte. Sei que chorei. Que dei voltas na almofada. Sei que depois de Balduíno e de Tomás nunca mais fui o mesmo. Na mistura da escravatura do século XIX com a pobreza do século XX, encontrei o meu rumo. O meu trilho. Na parede podia ver bandeiras e canhões. Multidões e revoltas. Podia ver o mundo a mudar. Foi naquele colchão de palha, no silêncio da noite, que ganhei nova consciência. Muitas folhas já folheei, muitas capas já encerrei, mas Balduíno e Tomás estão sempre aqui, no coração. Como Gineto, de Vila Franca de Xira.

Cresci. O pátio foi demolido. Conheci uma algarvia. Já não fico preto, com lamento meu. Continuo a gostar de camisas brancas. A minha consciência foi ganhando consistência. O mundo parou no tempo como o relógio sem corda. A miséria aumenta. O racismo continua. A escravatura ganhou outra forma. Os bárbaros estão de volta. Os herdeiros do chicote e das correntes. Da censura e da repressão. Das fardas e das botas cardadas. Trump, Bolsonaro e o triste Ventura sonham com um mundo velho. Chamam-lhes populistas. O capitalismo sempre foi bom a rebaptizar. Chamem-lhes o que eles são: fascistas.

O João, o Paulo, o Jorge, o Chico e eu seguimos pelas nossas vidas. Pelos nossos trilhos. Já não temos a comuna com cheiro a carapau frito. Mas sei que todos gostam de camisas brancas. E no meio dos trilhos com várias configurações, está na hora, mais do que nunca, de construir a ponte da esperança. Todos, seres humanos de paz e amantes da liberdade, têm a obrigação, de juntos, lutar contra as bestas. Estou certo que Balduíno, Tomás e Gineto nos acompanharão. Como sempre. Pelo mundo novo.

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