O novelo dos antigos combatentes

A guerra colonial acabou há 45 anos e ainda se discute como é que o Estado deve reconhecer e compensar os antigos combatentes. É um novelo difícil de desenlaçar. Ninguém quer começar tudo outra vez do zero e os combatentes estão a morrer.

Reserve as quartas-feiras para ler a newsletter de Bárbara Reis sobre o outro lado do jornalismo e dos media.

Faço uma síntese maçadora, mas mínima: em Fevereiro, o Governo levou ao Parlamento uma proposta do Estatuto do Antigo Combatente para “fazer justiça” aos que foram à guerra entre 1961 e 1975, muitos deles a cumprir o serviço militar obrigatório; o texto inclui ideias da Liga dos Combatentes; PSD, CDS, BE, PCP e PAN apresentaram projectos alternativos; os últimos três dizem que aprovar o estatuto é uma “prioridade absoluta” a resolver até 23 de Julho, última sessão plenária até à rentrée; e os socialistas estão confiantes de que há vontade para limar os textos e consenso para aprovar o estatuto.

Tudo isto seria trigo limpo, não fosse a guerra colonial ter acabado há 45 anos. Angola tornou-se independente em Novembro de 1975 — meses depois da Guiné-Bissau e de Moçambique — e os militares que estavam em Timor-Leste regressaram em Dezembro. Andou-se anos a discutir como se calculavam as reformas, um Governo de António Guterres aprovou uma primeira lei, um Governo de Durão Barroso regulamentou-a, um Governo de José Sócrates alterou as regras para impedir acumulação de benefícios e agora um Governo de António Costa quer fechar o assunto ou, pelo menos, parte do assunto.

Tradução: o Parlamento português está a negociar os direitos dos antigos combatentes meio século depois do fim da guerra colonial. Os “veteranos” mais novos terão 65 anos, a maioria terá entre 70 e 90. Entre 1961 e 1975 foram mobilizados um milhão de militares e a Liga dos Combatentes diz que em 2000 estavam vivos 450 mil. “Há uns anos morriam 400 por ano, depois 500 por ano, agora devem morrer 600 por ano”, diz o general Joaquim Chito Rodrigues, 85 anos e presidente da liga, numa conversa por telefone. “Daqui a 20 anos, estão todos mortos. Se é para dignificar, reconhecer e ser solidário com os antigos combatentes, é agora — enquanto estão vivos. É uma despesa temporária.”

Quarenta e cinco anos depois, ainda se discute até a injustiça de os militares que estiveram na Guiné-Bissau serem prejudicados de forma automática nos cálculos para atribuir o suplemento de pensão porque o valor máximo é dado a quem esteve dois anos numa zona perigosa e a regra era tirar os soldados da Guiné antes dos dois anos — por ser muito duro.

Perguntar sobre o “porquê?” desta demora abre portas a uma tese de doutoramento. Falar com militares, governantes e deputados — como fiz esta semana — torna a tese num projecto de vários volumes e impõe um mergulho nos mitos, preconceitos e tabus, e também na crónica falta de dinheiro.

O Governo diz que a proposta é a melhor que os antigos combatentes alguma vez tiveram. Uns combatentes dizem que o simbolismo do reconhecimento é o mais importante, outros dizem que já há o “estatuto” e o “cartão” da Liga e pedem dinheiro. Um aumento do Suplemento Especial de Pensão (SEP) “é que faria a diferença”, diz o general Chito Rodrigues. As contas são simples: 320 mil pessoas receberam este suplemento em 2019, um total de 42,3 milhões de euros (dados oficiais). Estes são os “50 a 70 euros por ano” de que se ouve falar quando se fala no pouco que os antigos combatentes recebem. A Liga propõe que em vez de 50 euros por ano, recebam 50 euros por mês. Para o Estado, seria uma despesa de 150 milhões em vez de 42,3 milhões. O contra-argumento é que isso seria dar dinheiro a quem não precisa, pois muitos antigos combatentes não precisam de apoios sociais do Estado.

A actual proposta do Governo incluiu um reforço dos apoios: o orçamento da Acção Social Complementar sobe 55% (de 5,5 milhões para 8,5 milhões de euros), duplicando o Complemento Especial de Pensão (CEP), uma prestação atribuída aos pensionistas mais carenciados. É uma medida mais fácil, pois entram neste critério 1772 antigos combatentes, não os 320 mil do SEP. O Governo também propõe dar acesso gratuito nos transportes públicos (áreas metropolitanas e municípios vizinhos), museus e monumentos nacionais (propostas da Liga); define um Dia do Antigo Combatente (há propostas para três datas); cria o Cartão do Antigo Combatente e um plano de apoio aos combatentes sem-abrigo. Isto nos “novos direitos”. Para além disso, propõe “dar força de lei” ao Balcão Único da Defesa, Plano de Acção para Apoio aos Deficientes Militares e Centro de Recursos de Stress em Contexto Militar. São ainda feitas correcções relativas aos deficientes e agrupados direitos e regras dispersos numa só lei.

A Iniciativa Liberal e a deputada independente Joacine Katar-Moreira disseram que vão votar a favor da proposta do governo. O deputado André Ventura tem estado ausente da discussão. Há ainda muito a limar, a começar pelas ideias da oposição ausentes da proposta do governo: o PCP, BE e PSD propõem a isenção do pagamento de taxas moderadoras no SNS e a transmissibilidade do CEP e do SEP aos viúvos; PCP e BE propõem apoio médico e medicamentoso gratuito nas doenças raras e crónicas, uma “pensão mínima de dignidade”, mudanças na forma de contar o tempo de serviço militar e isenção de taxas de justiça e apoio judiciário, e CDS e PAN propõem anular a proibição de acumulação de benefícios, prevista na lei de 2002 e que resultou numa dívida do Ministério da Defesa à Segurança Social de quase 90 milhões de euros.

Já todos sabem o que custa cada proposta e todos sabem que os veteranos estão a ficar velhos. Aos militares, saberá sempre a pouco. Mas se é para fazer, que se faça agora. Ninguém quer desenlaçar o novelo outra vez.

Sugerir correcção