Ponte Salazar ou 25 de Abril?

Um país que se apresenta com uma das suas maiores obras (ou menor, é irrelevante) ostentando nomes de ditadores aproxima-se mais da Coreia do Norte do que de uma sociedade democrática.

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ENRIC VIVES-RUBIO

A pergunta colocada por Carlos Andrade esta quinta-feira, na Circulatura do Quadrado, da TVI24, terá sido, porventura, uma das mais interessantes contribuições para o debate a que temos assistido sobre o derrube das estátuas. “Deveria a Ponte 25 de Abril ter continuado a chamar-se Ponte Salazar?”, questionou o moderador.

Para quem não viu o programa, a interrogação até pode parecer desajustada, mas surge como consequência da classificação de David Justino à pichagem de estátuas: […] uma manifestação de querer apagar a memória… blackout da memória colectiva.” À pergunta acima descrita, o vice do PSD foi peremptório: “Claramente. Claramente.”

O argumento apresentado, que segundo o mesmo é válido também para a toponímia, é claro: estaremos, assim, a esquecermo-nos da nossa história ao retirar de monumentos, obras e ruas nomes associados, neste caso, ao Antigo Regime. Ora não terão os nomes posteriores exactamente o mesmo efeito? Não terá o nome 25 de Abril um peso até mais apropriado ao que é um Estado de direito e ao que significou esse dia para o povo português?

É que se um dos argumentos é também o policiamento constante da linguagem, há que sublinhar que a mesma tem, para o bem e para o mal, algum poder. Um país que se apresenta com uma das suas maiores obras (ou menor, é irrelevante) ostentando nomes de ditadores aproxima-se mais da Coreia do Norte do que de uma sociedade democrática.

A questão é também interessante porque coloca o debate em perspectiva. É comum alguns comentadores reiterarem que pichar estátuas é um ataque à arte, de seguida comparando-a com a natureza dos livros, quadros, filmes. Não é igual.

Na mais recente emissão do programa Governo Sombra, Pedro Mexia explicou com sucesso a distinção: “Pode-se ou não concordar com um livro, com um filme, um quadro.” E para isso, há que ler, ver, ou ouvir. E caso não se concorde, pois arrume-se, não se veja mais, dê a outra pessoa, meta no lixo.

Com as estátuas, a lógica não é a mesma: são erguidas com uma sustentação de reconhecimento e enaltecimento, no espaço público. Ora tal tarefa deveria requerer, e tem-no tido até então, um consenso popular (alheamento ou até indulgência).

Porém, quando a sociedade muda ou grita por mudança, por força de maioria ou minoria, há que encarar o debate sem medo de que caiam os pedestais ou de discutir, a montante, a razão de existirem tais monumentos. A avaliar argumentos e a testar a validade dos mesmos, porque assim é a natureza da sociedade tolerante e democrática.

Atrevo-me a dizer que é o comparável a submeter a população a crucifixos e outros objectos — como aconteceu anos a fio nas escolas primárias — de uma maioria sobre uma diversidade religiosa e cultural num em espaços público que ser quer laico.

Sobre as estátuas, pego no ponto de partida de Rui Tavares. O historiador esclarece que mais do que pichar e julgar o passado com o que sabemos hoje, é importante decidir e apurar a razão da decisão de erguer esta e não aquela estátua.

Há uns anos debateu-se sobre a publicação do Mein Kampf, a bíblia de Hitler, que deu lugar às atrocidades praticadas durante o Terceiro Reich. Ler o livro é essencial para compreender o inaceitável que foi este período da história, tal como para nos alertar de tentativas semelhantes. Não ler o livro é outra opção. Impedir a sua publicação? Jamais. Mas há lugar no espaço público para uma estátua ao seu autor, ou até ao próprio livro?

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