Carta aberta aos poderes políticos sobre a pobreza em Portugal

A pobreza não mata apenas os pobres. A prazo ela matará também a Democracia. É por isso urgente fazermo-nos ao caminho, propondo que se reflita e se aja sobre dez áreas fundamentais, independentemente dos ciclos políticos.

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João Gaspar

A pobreza tem há muito em Portugal uma dimensão que a todos deve preocupar e que justifica que os cidadãos unam a sua voz num protesto forte, premente e continuado, exigindo das autoridades do País que inscrevam o combate à pobreza como primeira prioridade. A pandemia do coronavírus acentuou aos olhos de todos a vulnerabilidade dos grupos mais desfavorecidos da sociedade portuguesa, reforçando, infelizmente, que a pobreza é, indubitavelmente, o principal problema do País. É essencial que as entidades sobre as quais recai a responsabilidade de enfrentar o problema não tenham dúvidas em defini-lo como tal – a prioridade das prioridades. Aliás, o esforço redistributivo da proteção social nos últimos anos conseguiu reduzir algumas desigualdades e é o sinal mais claro e evidente do caminho que deve ser trilhado e reforçado.

Segundo dados da OCDE, Portugal é dos países desenvolvidos onde é mais difícil sair da pobreza ou, do outro lado, deixar de ser rico. É por isso que pode demorar cinco gerações para que as crianças pertencentes a uma família que esteja na base da distribuição de rendimentos consigam um salário médio. Se a condição dos pobres e da pobreza em si mesmas são suficientes para gerar um clamor que nos faça exigir mais medidas e medidas mais eficazes, consideremos ainda que esta pandemia está a provar que uma sociedade é tão mais segura do ponto de vista sanitário quanto menores forem as desigualdades dos seus membros.

Segundo dados de 2018, a sociedade portuguesa é composta por uma população em que 21,6% das pessoas vive em risco de pobreza ou exclusão social. Deste universo vulnerável, 60% reside no Norte ou Centro de Portugal e 17,3% tem menos de 18 anos. Os Açores têm 36,4% da população em risco de pobreza ou exclusão e a Madeira 31,9%.

As mulheres são mais vulneráveis: 24% estão em risco. Esta face feminina da pobreza e da exclusão encontra-se também escondida em outras dimensões, tais como nas famílias monoparentais e nos idosos que vivem sós, em que esse risco se aproxima ou ultrapassa 1/3 destas populações.

A pobreza ou exclusão social atinge uma proporção alarmante dos desempregados: 58,4%.

Desemprego, baixa intensidade laboral, ausência de recursos financeiros, dificuldades no acesso a educação de qualidade e a cuidados de saúde ou más condições de alojamento vivem de mão dada com a pobreza. Agora, com a pandemia, tudo isto se está a agravar a todos os níveis materiais, no acesso a alimentação saudável, a educação de qualidade, a cuidados de saúde básico ou a um alojamento digno, como se agravará também a nível social o estigma, a vergonha, a discriminação, o isolamento e a exclusão. Temos é de impedir que se agrave a esperança em obter sucesso neste combate e impedir também que a indiferença ou desleixo das autoridades deixe os pobres mais pobres. A sociedade tem de ser mais respeitadora dos direitos humanos de todos e exigir o exercício da verdadeira democracia. A multidimensionalidade do fenómeno da pobreza tem de ser reconhecida pelos programas políticos e dar lugar a respostas integradas que mobilizam competências e recursos de diversas especialidades e parcerias.

Convocamos todos a que unam esforços. Esqueçam divergências, encontrem pontos de confluência e lutem por programas sociais que contribuam para um maior bem-estar da população que vive enredada na miséria em que nasceu ou para que foi atirada e em apoios inconsequentes e insuficientes. Lembramos que a Assembleia da República aprovou em 4 de julho de 2008 a Resolução n.º 31, em que “declara solenemente que a pobreza conduz à violação dos direitos humanos”. 

A pobreza não mata apenas os pobres. A prazo ela matará também a Democracia. É por isso urgente fazermo-nos ao caminho, propondo que se reflita e se aja sobre dez áreas fundamentais, independentemente dos ciclos políticos:

  1. As políticas públicas devem ter o individuo como preocupação central. Devem orientar-se para o crescimento sócio-económico vocacionado para o desenvolvimento e bem-estar de todos os cidadãos.
  2. A educação tem de chegar a todos. A sociedade não tem conseguido esbater as diferenças que a proveniência social tem determinado, particularmente em tempo de uma crise que agudizou as desigualdades educativas. Os jovens pobres devem ter assegurados os mesmos direitos de acesso ao ensino que os mais favorecidos e o Governo deve garantir-lhes um especial acompanhamento nas atividades escolares. 
  3. Os apoios à infância constituem outra vertente fundamental da luta contra a pobreza. Importa reforçar a intervenção junto das famílias carenciadas com crianças, na medida em que famílias pobres são o foco de pobreza e consequentemente os elementos centrais a apoiar neste combate. É particularmente aconselhável repensar o modelo de atribuição do Rendimento Social de Inserção, tendo em consideração o conhecimento científico atualmente existente, nomeadamente na área das neurociências, e visando uma intervenção eficaz e libertadora do Ser Humano.
  4. A população portuguesa está envelhecida. É premente promover eficazmente medidas que conduzam a um melhor equilíbrio geracional, sem o que não se atenuarão as diferenças que contribuem para o aumento da pobreza e para o que se destacam as medidas conducentes ao aumento da taxa de natalidade e as direcionadas para um devido acolhimento migratório.
  5. A pobreza concentra-se sobretudo nas grandes cidades. Temos de promover o interior do país e encontrar medidas que ajudem a fixar e atrair população, discriminando positivamente os que optarem por fazer a sua vida longe dos grandes centros, nomeadamente de Lisboa e Porto.
  6. As empresas desempenham um papel fundamental no desenvolvimento socioeconómico. É aconselhável apoiar as que garantam o primeiro emprego aos jovens e sobretudo as que não só o façam com salários dignos que tenham em conta as habilitações dos seus colaboradores, como invistam em políticas de responsabilidade social e sustentabilidade.
  7. O assegurar de cuidados de saúde representa outra dessas vertentes. Importa garantir que o Sistema de Saúde, em qualquer forma da sua evolução, protege os mais pobres, sobretudo as pessoas idosas, as crianças e os doentes crónicos, garantindo que lhes são assegurados os cuidados de saúde de que necessitam, nomeadamente consultas e intervenções cirúrgicas em tempo útil.
  8. O direito a uma habitação digna deve ser assegurado. Devem em particular ser garantidas condições de salubridade e de qualidade de água, tão associadas a problemas de saúde de quem vive em condições precárias. 
  9. Também a justiça deve ser acessível a todos. Realmente efetiva. É preciso ir mais longe na garantia de que mesmo os mais pobres podem aceder ao Direito e aos Tribunais.
  10. O impacto social da reorganização de serviços de interesse público, sejam públicos ou privados, deve ser sempre cuidadosamente ponderado. Potenciais deslocalizações de serviços – públicos e privados – devem ser feitas sem que os mais necessitados vejam afetados os seus interesses, garantindo-se mecanismos de substituição para que não sejam prejudicados.

Em suma, temos de garantir uma política social solidária com uma ação multidisciplinar e integrada junto das famílias pobres, combatendo os problemas estruturais que estão na origem da pobreza, não se limitando essa ação à mera distribuição de recursos, muitas vezes parcos e mesmo assim sujeitos a um racionamento frequentemente questionável. Mas este combate não pode ser apenas travado pelos órgãos do Estado. É um combate nosso, de todo o Portugal.

Esta tem de ser uma causa nacional em que todos apostem tudo.

Subscrevem:

  • Pe. Agostinho Jardim Moreira, Presidente da Rede Europeia Anti-Pobreza/​EAPN
  • Ana Flor, Conselho Social (CS)​ EAPN Funchal
  • António Monteiro, CS Lisboa
  • Carla Feliciano, CS Funchal
  • Carlos Maurício Barbosa, CS Porto
  • Carlos Silva, CS Funchal
  • Guilherme Figueiredo, CS Porto
  • Guilhermina Maria Rego, CS Porto
  • João Pedro Tavares, CS Lisboa
  • José Antunes Calçada, CS Lisboa
  • José Leite Pereira, CS Porto
  • Luísa Valle, CS Lisboa
  • Manuel Barros, CS Porto
  • Manuel Fontes de Carvalho, CS Porto
  • Manuel Sobrinho Simões, CS Porto
  • Maria Amélia Ferreira, CS Porto
  • Maria Joaquina Madeira, CS Lisboa
  • Maria José Morgado, CS Lisboa
  • Mariana Pinto da Cruz, CS Funchal
  • Miguel Pavão, CS Porto
  • Paula Guimarães, CS Lisboa
  • Pedro Barbas Homem, CS Lisboa
  • Ricardo Andrade Silva, CS Funchal
  • Sebastião Feyo de Azevedo, CS Porto

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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