Coisa Mais Linda: as dores das mulheres que não querem viver num mundo de homens

A segunda temporada da série brasileira chegou esta sexta-feira à Netflix e volta a reunir contos de emancipação feminina numa sociedade machista dos anos 60 que ainda o é em 2020.

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As protagonistas da série criam um clube com actuações ao vivo de bossa nova contra o preconceito de uma sociedade para quem isso não é "coisa de mulher" DR

1959. Uma nova música chega às estações de rádio do Brasil, com acordes que sopram uma brisa ligeiramente diferente daquela que costuma circular pelas ondas hertzianas. “Sem ela não há paz, não há beleza / é só tristeza e a melancolia que não sai de mim.” É a voz de João Gilberto, com arranjos de Tom Jobim e letras de Vinicius de Moraes. É o tema Chega de Saudade, símbolo do início de uma nova era na música brasileira. É jazz? É pop? É samba? É bossa nova.

O ano de 1959 situa o Brasil num momento importante da sua história, perto de grandes conquistas que, em não muito tempo, dariam lugar a grandes apertos. Um ano antes, Pelé brilha no Mundial da Suécia, ajudando o plantel “canarinho” a triunfar sobre os anfitriões na final. Um ano depois, o Presidente Kubitschek, homem que queria fazer a economia brasileira avançar “50 anos em cinco”, celebra a inauguração da nova capital, Brasília. Mudanças alucinantes num país que se aproximava a passos largos da ditadura militar com que se confrontaria por mais de 20 anos. No meio das transformações, uma constante: este não era, no Brasil e não só, um mundo para as mulheres.

A segunda temporada da série Coisa Mais Linda, que se estreou na Netflix esta sexta-feira — e que, quase escusado seria dizer, tem o nome do primeiro verso do clássico Garota de Ipanema, que, quando João Gilberto se juntou à mulher, Astrud, e ao saxofonista Stan Getz, transformou a bossa nova num fenómeno internacional —, mostra as dores daquelas que tentaram remar contra a maré.

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Adélia e Malú fundaram o clube de música ao vivo "Coisa Mais Linda" perante o preconceito de uma sociedade para quem aquilo não era "coisa de mulher" DR

Rapidamente os espectadores conhecem o desfecho trágico do conflito que marcou o fim da primeira temporada, com uma festa de Ano Novo na praia de Copacabana em que as protagonistas faziam planos de dizer “adeus” a um difícil 1959 e “olá” às novas possibilidades de 1960. Malú (branca, rica — até o marido fugir com o seu dinheiro, pelo menos —, paulista) e Adélia (negra, pobre, neta de escrava, “faxineira”, carioca) haviam precisado de superar muitos obstáculos para abrirem o restaurante e clube de bossa nova “Coisa Mais Linda”. Os seus próprios desentendimentos, por um lado, e, por outro, o preconceito de uma sociedade para quem aquilo não era “coisa de mulher”. Agora, com Theresa e Lígia, as suas amigas e companheiras de armas, o momento era de celebração. Ou seria: o assassinato de Lígia, morta por um marido incapaz de aceitar o seu sonho de ser cantora, deixa um vazio no grupo que ameaça colocar um fim prematuro aos seus sonhos.

Com os problemas pessoais das personagens principais agora em maior evidência, Coisa Mais Linda não perde o seu olhar ácido em relação a uma sociedade machista do início dos anos 60 — que, com as políticas conservadoras de Jair Bolsonaro, não deixou de o ser nos dias de hoje. Malú lida com o regresso inesperado do mesmo homem que a abandonou sem dar explicações e tem de se servir da coragem que não sabia que tinha para que este não se apodere do seu espaço de música ao vivo. Theresa, fora da revista de moda onde teve de lidar com editores misóginos que deixavam bem claro que “as mulheres não querem ler nada sobre esse negócio de emancipação”, junta-se a uma estação de rádio e descobre que, fora os ocasionais rasgos de liberalismo, o ambiente de trabalho não é lá muito diferente. Contos de lutas feministas quando o termo “feminismo” ainda não tinha chegado ao vocabulário brasileiro, e que, apresentados numa série de época, permanecem actuais.

Pelo meio, há espaço para o que até então constituía o núcleo secundário ter mais tempo de ecrã. Desde o aparentemente implacável e surpreendentemente engraçado Roberto — homem com indisfarçável olho para o negócio que, entre avanços e recuos, ajuda Malú a transformar o clube de bossa nova num caso de sucesso no Rio de Janeiro suburbano e a fazer da marca “Coisa Mais Linda” uma espécie de editora discográfica, pronta a lançar os melhores novos nomes deste samba melancólico — ao carismático Capitão, artista parecido com um jovem Martinho da Vila que se casa com Adélia e que, mesmo perante as difíceis revelações familiares que tem de digerir (revelações essas que já vinham da primeira temporada), adora a pequena Conceição como uma filha.

Outros intervenientes, como Ivone a irmã de Adélia que é dona de uma língua afiada e um coração valente ou Chico — uma espécie de Elvis Presley com uma guitarra acústica, o clássico artista torturado​ que acha mais piada aos cavaquinhos e aos pandeiros da roda de samba do que às pistas de dança do Mississípi –, trazem as camadas necessárias para a série pintar um retrato fiel de um colorido, quente, muitas vezes conflituoso e sempre apaixonante Rio de Janeiro.

As mulheres de Coisa Mais Linda são forçadas a escalar montanhas para que, no palco, à beira do balcão, as músicas que amam resultem em sons muito mais harmoniosos que o canto desafinado do machismo (e, no caso de Adélia, racismo) vincado contra o qual combatem. Num clube “Coisa Mais Linda” de 2020, seria possível imaginar Douglas Germano, compositor de 52 anos que, em 2016, editou sambas fantásticos no disco Golpe de Vista, a cantar algo como o refrão do tema Marcha de Maria: “Vai, Maria, segue tua sina, que sina de Maria é ir / Ir lavando o sofrimento, ir gritando contra o vento.” 1960 já foi há 60 anos. Esta série mostra que muita coisa mudou nestes 60 anos — mas, talvez, não tanto como gostaríamos de admitir.

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