Câmara de Lisboa anula projecto imobiliário para o antigo Museu da Rádio

Licenciamento, projecto de arquitectura e pedido de informação prévia: foi tudo revogado depois de os serviços terem descoberto discrepâncias nos desenhos. Promotor promete reagir para fazer valer os seus direitos.

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Miguel Manso
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Mais de três anos depois de ter aprovado um projecto imobiliário para o antigo Museu da Rádio, na Lapa, a Câmara de Lisboa chegou agora à conclusão de que havia erros nos desenhos e anulou todo o processo. Sob proposta do vereador do Urbanismo, Ricardo Veludo, a autarquia decidiu esta quinta-feira por unanimidade declarar nulas as aprovações do projecto de arquitectura, do pedido de licenciamento de obras e até do pedido de informação prévia, o que obriga o proprietário a partir novamente do zero.

A decisão da câmara surge depois de vários anos de contestação por moradores da Lapa, deputados da assembleia municipal e vereadores do CDS, que há muito vinham apontando supostas ilegalidades ao projecto. Porém, em mais de uma ocasião, o executivo rejeitou as críticas. O ex-vereador do Urbanismo, Manuel Salgado, que aprovou o licenciamento por despacho, chegou a afirmar que tinha visto e revisto o processo e que não lhe encontrara problemas. “O projecto não é ilegal. O projecto é legal, já o vi e revi de uma ponta à outra e cumpre integralmente toda a legislação aplicável”, disse.

Essa leitura foi agora contrariada na proposta de Veludo. O principal motivo que levou a câmara a anular o processo é técnico – uma discrepância entre o projecto e a realidade sobre a profundidade das empenas –, mas há também uma alínea segundo a qual foi violado um artigo do Plano Director Municipal (PDM), o que torna a operação ilegal.

De acordo com um despacho da directora municipal de Urbanismo, Rosália Russo, ao propor a construção de edifícios num logradouro com mais de 10 metros de extensão de frente para a rua, o projecto não cumpre o artigo 44º do PDM. Ricardo Veludo dá assim razão aos moradores das imediações, que sempre apontaram este como um dos pontos irregulares da operação.

Medidas discrepantes

Como o PÚBLICO noticiou em 2018, o projecto diz respeito a um edifício de gaveto na Rua do Quelhas, onde funcionou o Museu da Rádio, e ao seu logradouro, onde existem barracas nunca legalizadas. A empresa imobiliária VGPT I, dona do lote, propunha a reabilitação do palacete e a construção de dois novos edifícios de habitação nas traseiras, no local das barracas.

Embora seja genericamente proibido fazer construções novas em logradouros (há excepções), a câmara aprovou o pedido de informação prévia e o pedido de licenciamento porque numa das plantas do Plano de Urbanização do Núcleo Histórico da Madragoa, entretanto caducado, havia uma legenda que para aquele local indicava “Demolição com construção”. Tanto alguns vizinhos como o Fórum Cidadania Lx, que se envolveu no assunto, argumentavam que essa interpretação autárquica não era válida uma vez que as barracas sempre tinham sido ilegais. Levado o assunto à Justiça, dois tribunais deram razão à câmara e ao promotor.

Em reacção à proposta de Ricardo Veludo, a VGPT I, detida por Rolland Berda (filho de Claude Berda, que tem vários investimentos imobiliários em Portugal), diz ao PÚBLICO que “tomará as decisões e acções que se revelarem necessárias à defesa dos seus direitos e interesses legítimos” e que “foram prestados os devidos esclarecimentos no âmbito da audiência prévia de interessados no sentido de demonstrar a legalidade plena do projecto de arquitectura”.

Segundo documentação camarária a que o PÚBLICO teve acesso, foram as queixas de vizinhos que levaram topógrafos do município ao terreno para medir o lote. Aí constataram que a empena do edifício contíguo tinha uma profundidade de 9,14 metros e que o projecto da VGPT I propunha, imediatamente ao lado, um novo imóvel com profundidade de empena de 11,2 metros. “A operação urbanística aprovada revela-se impossível de concretizar, porquanto não é possível garantir a concordância entre empenas que aparece representada nas plantas do projecto e que é exigível pelas regras aplicáveis”, escreveu Rosália Russo na informação que serviu de base à proposta de Veludo.

Chamada a pronunciar-se, a VGPT I argumentou que o erro se devera à cartografia municipal usada como base e apresentou uma alteração do projecto que rectifica a questão das empenas. A directora municipal afirmou, no entanto, que isso de nada servia porque o tal artigo 44º do PDM continuava a ser violado.

Análise começou em 2019

Em Janeiro do ano passado, a contestação ao projecto chegou à assembleia municipal sob a forma de uma petição e deputados de vários partidos puseram em causa a actuação da câmara, alegando que tinham de ser os cidadãos a fiscalizar os processos.

O CDS, que também levava uma proposta de nulidade do processo à reunião desta quinta mas acabou por retirá-la, diz ter identificado outros pontos ilegais e que foi isso que levou o executivo socialista a agir. “Se não tínhamos levantado a questão, não tinha havido análise nenhuma”, acredita o vereador João Gonçalves Pereira. “É absolutamente notável como a câmara faz um licenciamento de uma obra destas sem fazer um levantamento topográfico”, critica o centrista.

Em resposta escrita ao PÚBLICO, o vereador Veludo confirma que só depois da queixa dos vizinhos é que os topógrafos da câmara se deslocaram ao local, o que é normal. “Importa referir que os projectos de arquitectura são acompanhados por um termo de responsabilidade dos técnicos que os elaboram, que atestam a veracidade das suas declarações, não competindo, assim, aos serviços municipais a sua verificação, a qual apenas ocorre quando são suscitadas dúvidas concretas e devidamente fundamentadas”, escreve o eleito.

O vereador afirma também que, ainda em 2019, a câmara fez a “verificação de vários pressupostos fundamentais subjacentes à execução deste projecto” tendo em conta “a sucessão de reclamações que foram sendo apresentadas e a respectiva fundamentação”, tendo sido a questão da profundidade das empenas a decisiva para avançar com a nulidade do processo.

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