Juízes: dever de reserva e liberdade de expressão

Em face da lei e da ética judicial, a questão de saber se os juízes podem emitir publicamente opiniões sobre casos judiciais ou pré-judiciais só tem uma resposta: não podem!

Há por aí alguma confusão sobre o conteúdo da liberdade de expressão e do dever de reserva dos juízes. Uma confusão em grande parte injustificada, pois as regras são claras e conhecidas há muitos anos. O artigo 7.º-B do Estatuto dos Magistrados Judiciais diz que os juízes “não podem fazer declarações ou comentários públicos sobre quaisquer processos judiciais” (salvo quando autorizados pelo Conselho da Magistratura, para defesa da honra ou para a realização de outro interesse legítimo). Esta proibição, cuja violação constitui ilícito disciplinar, abrange, sem distinção, o pronunciamento sobre processos do próprio juiz ou sobre processos de outros juízes ou autoridades judiciárias, estejam pendentes ou tenham já sido julgados com decisão final. 

Noutro plano, aqui com valor meramente indicativo de boas práticas, o Compromisso Ético dos Juízes Portugueses vai mais longe ao estabelecer que “os juízes recusam fazer declarações ou comentários que envolvam uma apreciação valorativa”, não já sobre processos mas até sobre “assuntos que razoavelmente seja de esperar que se tornem objecto de um processo”. Portanto, em face da lei e da ética judicial, a questão de saber se os juízes podem emitir publicamente opiniões sobre casos judiciais ou pré-judiciais só tem uma resposta: não podem!

Evidentemente que a sujeição ao dever de reserva limita a liberdade de expressão do juiz. Mas isso nada tem de estranho. Quando são investidos nessa qualidade, os juízes sabem que se vinculam a um estatuto muito exigente, que lhes impõe limitações especiais ao exercício de direitos, superiores à da generalidade dos cidadãos. O dever de reserva não constitui uma compressão arbitrária e desproporcionada de direitos, dado que se trata de um instrumento fundamental para a protecção da confiança na imparcialidade e integridade da Justiça (como reconhecido pelo TEDH nos casos Wille v. LiechensteinBaka v. HungriaKayser v. Turquia e Di Giovani v. Itália).

O conteúdo do dever de reserva é exactamente o mesmo, quer a intervenção pública do juiz se expresse numa conferência, num artigo de opinião num jornal ou num programa de televisão, quer se expresse num blogue, no Facebook ou no Twitter. O que releva não é o meio em que a opinião se expressa mas sim a natureza pública dessa expressão. As redes sociais não podem ser vistas como uma offshore de responsabilidade na deontologia profissional.

As redes sociais democratizaram a comunicação e deram palco e visibilidade a muitos juízes que antes apenas se expressavam em círculos privados ou eventos públicos restritos. Este fenómeno globalizado, de presença nas redes sociais, levanta dificuldades novas, que estão a ser objecto de estudo e regulamentação em muitos países e por instituições internacionais como a Rede Global de Integridade Judicial, das Nações Unidas, e a Comissão Europeia para a Democracia pelo Direito (Comissão de Veneza), do Conselho da Europa. Todos conseguimos intuir o potencial de dano na confiança na Justiça se os juízes puderem livremente falar em público sobre processos ou casos mediáticos que inevitavelmente acabarão nos tribunais. Por isso, é necessário e urgente que os juízes, eles próprios, debatam esta matéria com seriedade e profundidade.

A questão não pode pôr-se na licitude ou ilicitude nem na proibição do uso das redes sociais por juízes. Isso sim, seria uma limitação desproporcionada e inconstitucional da liberdade de expressão. A intervenção cívica é salutar e deve ser protegida. O que tem de ser objecto de clarificação e regulamentação de boas práticas é o conteúdo e limites dessa intervenção e não o direito a intervir. Deve o juiz identificar-se como tal ou intervir sob anonimato? Deve a sua rede de contactos e “amizades” ser objecto de restrições? As publicações em páginas ou grupos de acesso restrito, tendo em conta a previsibilidade do risco de partilha inerente aos conteúdos digitais, devem ser consideradas pronunciamento público? Qual o significado de um gosto ou expressão equivalente numa publicação? Partilhar uma publicação de terceiros significa necessariamente adesão ao seu conteúdo? Estes são apenas alguns exemplos de zonas cinzentas críticas que estão a ser objecto de debate por esse mundo fora e que nós também temos de enfrentar um dia destes.

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