Histórias da Construção Europeia [4/6]: As instituições e os tratados, âncoras do futuro da Europa

Os cem artigos do Tratado que criou a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço serão solenemente confirmados no dia 18 de Abril de 1951, em Paris. Mas o processo de ratificação vai ser longo e difícil. Quarto capítulo da série “Histórias da Construção Europeia”, do economista José Veiga Sarmento, a partir das memórias de Jean Monnet.

A seguir à apresentação de Robert Schuman, a 9 de Maio de 1950, do Plano que ficou com o seu nome – mas que era afinal o plano Monnet – e depois de adquirido o apoio, sem falhas, do chanceler Adenauer, e ainda da manifestação de interesse em participar por parte da Itália e dos países do Benelux, reúne-se em Paris, a 20 de Junho de 1950, a Conferência do Plano Schuman, de que fizeram parte as delegações dos seis países signatários. Não sem antes, é certo, se ter confirmado que as indecisões britânicas não iriam corromper o trabalho da construção desta nova entidade fora das Nações, que não era supranacional, mas sim europeia, como dizia Monnet.

Ao longo de alguns meses, o Plano desenhado por Monnet vai ser objecto de discussão e reflexão dos delegados que evoluem no desenho institucional de um Tratado consagrando uma Comunidade onde vão estar presentes muitos dos ingredientes da União Europeia da actualidade: um Órgão Executivo, a Alta Autoridade (mais tarde seria a Comissão), um Conselho de Ministros Nacionais, um Parlamento (na altura com deputados escolhidos pelos Parlamentos Nacionais), um Tribunal e os conceitos-base de entidade solidária, de respeito pela maioria e da interdição de abandonar a Comunidade sem o acordo dos Parceiros.

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Robert Schuman e Jean Monnet DR

Não foi, como se pode imaginar, uma discussão fácil. Com excepção da delegação alemã – dirigida por Walter Hallstein, professor da Universidade de Frankfurt –, todas as outras delegações vinham com o mandato de defender a sua soberania nacional. Para vencer a resistência destas delegações, valeu a Monnet a posição de Hallstein, que nunca perdia a oportunidade para referir que, acima da soberania nacional, o que estava em causa era a paz e o futuro da Europa. Contra o princípio da independência da Alta Autoridade, manifestavam-se os delegados da Bélgica, que rebatiam que o seu Governo nunca aceitaria conferir poderes a instituições fora dos objectivos nacionais, os do Luxemburgo, que exigiam que houvesse procedimentos para recurso e anulação das decisões, e os italianos, que requeriam um estatuto especial para a siderurgia italiana. A resposta franco-alemã era sistematicamente a mesma, i.e., colocava a discussão ao nível do interesse da comunidade, o que significava que deixavam de existir siderurgias nacionais.

Para Monnet, aceitar que o novo organismo funcionasse meramente em representação de governos nacionais seria concordar em ter uma nova OCDE ou um outro Conselho da Europa, teatros de vaidades nacionais onde era impossível a tomada de decisões. O executivo da nova instituição teria que ser independente ou então não valeria a pena existir. Releve-se que, quando hoje se fala no casal franco-alemão – representado ao longo da História por diferentes actores –, é importante salientar que esse ‘matrimónio’ esteve também na base da elaboração do primeiro Tratado.

Mas que não haja ilusões: o que movia franceses e alemães a construir o Tratado era a defesa dos seus próprios interesses. Para a França, tratava-se de impedir que os alemães utilizassem em exclusividade os recursos minerais que dariam à Alemanha a supremacia industrial. Para a Alemanha, o objectivo era o reconhecimento e o regresso à cena internacional, depois da barbárie nazi e da derrota militar. Para Monnet, a existência de interesses diferentes ou antagónicos não era em si mesma relevante. O que importava é que se construísse uma plataforma que permitisse tratar em conjunto as diferenças de entendimento e de interesses. O fundamental era o exercício da procura de um interesse comum.

Como poucas coisas na vida seguem um percurso isento de percalços, quando o documento do Tratado da Comunidade do Carvão e do Aço ganhou letra de forma, um acontecimento externo à Europa veio colocar em risco a sua oportunidade: a Coreia do Norte invade a Coreia do Sul. Por outro lado, os Estados Unidos começam a manifestar preocupação com o risco de invasão comunista da Europa, argumentando, por isso, no sentido de uma maior participação dos europeus no seu esforço de defesa. Ora isto significava a participação militar dos principais interessados, os alemães ocidentais. Mas o tema do rearmamento de um exército na Alemanha, pragmaticamente aceite pelos americanos, era impensável para franceses e ingleses. Para os antigos Aliados, a ideia da reconstrução de uma Wehrmacht levantava fantasmas terríveis. Mas, para os alemães, a existência de um exército nacional a par dos outros era a consagração do título de país soberano, o que tornaria escusado o preço a pagar pela partilha dos recursos do carvão e do aço. E é por isso que, quando o Tratado Schuman estava quase concluído, voltam ao de cima as vertigens nacionais.

Valeu a atitude do chanceler Adenauer que, fazendo frente às forças nacionalistas, se opunha à criação de um exército alemão. Ficava, no entanto, por resolver a exigência americana da participação da Alemanha no esforço de defesa. A saída para este imbróglio, pensou Monnet, estaria na criação de um exército europeu, construído, porque não, com base na jurisprudência já adquirida com o Tratado da Comunidade do Carvão e do Aço. Os americanos dão o acordo à solução que vai encontrar o seu maior defensor no próprio chanceler alemão. Surge mesmo a ideia de um ministro da Defesa europeu. Precaução necessária era a de que a entrada de soldados no novo exército não seria feita através da justaposição de unidades dos vários países, mas sim via recrutamento directo. Repetindo o que já tinha feito com Schuman a propósito do carvão e do aço, Monnet vai entregar ao Governo francês uma solução “chave na mão” para uma Comunidade Europeia de Defesa, que será conhecida como Projecto Pleven, segundo o nome do primeiro-ministro da altura.

Na Alemanha, as coisas não estavam fáceis para Adenauer. Com a perspectiva de poder vir a renascer a Wehrmacht, a esquerda classificava o Projecto Pleven como a Legião Estrangeira da França e a direita falava de um exército de mercenários. Os nacionalismos de esquerda e de direita vão ter, desde então, material para exercitarem as suas mensagens anti-Europa. Mas no caso do Projecto de Defesa, as maiores dificuldades de concretização acabarão por surgir da própria França, tanto ao nível militar como da opinião pública, pelo que, dos dois projectos Monnet, só o do Carvão e do Aço vai ver a luz do dia, como sabemos e veremos mais adiante.

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Paris, 18 de Abril de 1951: assinatura do tratado que institui a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço DR

Os cem artigos do Tratado que criou a CECA, a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, serão solenemente confirmados pelos líderes dos seis países no dia 18 de Abril de 1951 em Paris, pouco menos de um ano depois da Declaração de Schuman. Para Adenauer, esta era a primeira viagem como líder da nova Alemanha com o direito a estar sentado ao lado de outros líderes europeus. O seu objectivo de fazer regressar a Alemanha ao palco internacional estava ganho. Mas o processo de ratificação vai ser longo e difícil. Na Alemanha, a oposição da esquerda e dos industriais foi vencida por Adenauer com a ajuda dos sindicatos; em França, comunistas e De Gaulle – juntos na senda de evitar a degradação da grandiosidade da nação francesa – fizeram barreira sem tréguas mas sem sucesso, pois em Abril de 1952 o Parlamento francês aprova o Tratado. Faltava, então, decidir o local para instalar a sede da Alta Autoridade. Numa antevisão do que viria a acontecer mais tarde, os seis líderes europeus estiveram reunidos 18 horas para conseguir um acordo, tendo o Luxemburgo surgido, ainda que provisório, como a solução de recurso para ser possível fechar a então já longa madrugada.

Apesar de todas as vicissitudes, começaria na Europa, e acima das Nações, uma nova experiência que, a resultar, faria sair a guerra do vocabulário europeu e, pouco a pouco, iria criar uma nova linguagem de interesses, e um novo conceito de identidade para um crescente número de cidadãos deste traumatizado Continente.

Este tema será o objecto do próximo capítulo.

Escrito a partir das memórias de Jean Monnet

Próximo artigo desta série: Uma nova entidade chamada Europa

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