Fala-se no diabo e ele aparece

Na semana em que se assinalaram 25 anos após o assassinato de Alcindo Monteiro, repetem-se acusados e (re)aparecem murais de apelo ao ódio racial (com erros de português). “Fala-se no diabo e ele aparece”, diria Rui Rio, digo eu.

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PAULO PIMENTA

“Ainda ficamos é racistas com tanta manifestação anti-racista, não noto isso na sociedade portuguesa, não há racismo na sociedade portuguesa”, disse Rui Rio, segundo ele próprio. Em 2020, esta forma de pensar é como dizer a alguém “tem calma”, depois de ser vítima de crimes e de injustiça sistemática, assente em discriminação racial, ou ainda a quem esteja consciente dos factos e decidido a fazer algo para não assistir a mais repetições ou ser cúmplice no ignorar. Sem justiça, não há paz! Soa incontestável em português de agora, e de já. Não soa?

Mas Rui Rio parece saído de um filme antigo português, onde não havia racismo. Nem sequer existiam actores negros nos filmes. Tudo era cândido... Uma bonita “aldeia da roupa branca”. Boa gente que votaria no PSD, se pudesse votar, diria Rui Rio, digo eu.

Contra um “não-facto”, não pode haver debate sequer. Rui Rio só não me desarmou com esta forma de abordar o assunto, porque não uso esse tipo de armas. Deixou ainda no ar a ameaça de que, quanto mais se falar, mais se pode estimular o surgimento de racismo. Se fosse médico, ele resolveria a sarna, aconselhando parar de coçar.

Na semana em que se assinalam 25 anos após o assassinato de Alcindo Monteiro, (re)apareceram murais a apelarem ao ódio racial (com erros de português). “Fala-se no diabo e ele aparece”, diria Rui Rio, digo eu. Se nos fiássemos em Rui Rio, estaríamos surpreendidos com estas manifestações racistas. Deveriam de facto ser coisas do passado, mas estão aí, dentro de um armário de esqueletos, cheios de vontade de saírem cá para fora.

No fundo, o líder do PSD apela ao tipo de sabedoria que assume não se dever mexer no que não está mal. Mas esta lógica peca por servir apenas quem está bem ou quem não está mal. Os que estão mal importam. E há um registo racializado, também em Portugal. Não é uma opinião. E pode ser ainda mais factual, assim que os registos o permitam. Incluindo os da Polícia.

O líder do maior partido da oposição, e que tem governado em alternância, pode fazer algo para acabar com estas manifestações que tanto o incomodam, da mesma forma simplista com que as descarta. Criminalizando o racismo, sem nuances, por exemplo. Seguindo a sua linha de pensamento, não há nada que temer, porque “não há racismo na sociedade portuguesa”, diz Rui Rio. Assim sendo, aprovar essa lei seria um gesto puramente patriótico e protector de todas as pessoas de bem, desse desnecessário mal que, segundo o próprio, a existir, terá vindo de fora.

Criminalizar uma má conduta não a resolve. A reeducação colectiva e a de cada um são nossa responsabilidade e o caminho que temos de seguir. Mas porque terá esta conduta de ser ignorada ou ser vista a uma luz diferente de tantas outras?

Pedro Coquenão tem criado e desenvolvido trabalho na área da música, rádio, dança, artes visuais e plásticas sob o nome Batida

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