“Contas certas”, realidade errada

A oposição entre “contas certas” e realidade errada passou a ser uma espécie de mote para o destino do país – e não apenas sob a tutela de Mário Centeno e António Costa.

A saída do homem das “contas certas” do Governo coincidiu com o momento em que a periferia da Grande Lisboa se tornou a zona do país mais afectada pelo coronavírus. Conjugaram-se, assim, duas falsas surpresas: a de que Centeno, como se previa há longos meses, iria finalmente deixar o palco, e a de que uma realidade conhecida por todos mas menosprezada pela sua banalização ao longo do tempo acabaria por impor-se como uma das expressões mais críticas da covid-19.

Ter as “contas certas” foi o objectivo pelo qual se bateu Centeno até perceber que o seu ciclo como mago das Finanças tinha terminado – e que ele, o super ministro-contabilista, já não teria ocasião para repetir a proeza. Uma proeza que lhe valeu a medalha de ouro da popularidade ministerial, por muito que isso parecesse improvável a um ministro das Finanças (ou talvez não, se tivermos em conta que esse estatuto foi a base de lançamento do mais célebre e poderoso dos seus antecessores, Oliveira Salazar).

Mas podemos ter as “contas certas” e isso não impedir – antes pelo contrário, neste caso – a explosão de uma realidade social, humana e urbana insustentável. Não é por acaso que o país das “contas certas” é o mesmo onde a área metropolitana à volta da capital se mostra mais propícia à propagação do vírus, devido à degradação habitacional terceiro-mundista, às desigualdades sociais, à precariedade laboral e à deterioração dos transportes colectivos. O coronavírus retratou de forma implacável essa realidade profunda – uma das mais profundas – do país.

Mas não foi apenas a obsessão cega das “contas certas” – imposta, aliás, pela ortodoxia europeia – que eclipsou a preocupação com essa realidade. A verdade é que, do Governo às autarquias, para não falar nos próprios cidadãos cujo estatuto lhes permite escapar aos terríveis constrangimentos da condição suburbana, se instalou um sentimento de indiferença, impotência ou fatalismo face à possibilidade – e à necessidade urgente – de alterar estruturalmente esse estado de coisas. Apesar de se ter tornado uma notícia diária, quase ninguém aparece a tirar conclusões e apresentar programas e soluções para um problema que tenderá cada vez mais a agravar-se. Aliás, a questão não é só não haver ideias e propostas para concretizar – é como se isso fosse simplesmente irrealizável e não fizesse sentido perder tempo com tais utopias.

A oposição entre “contas certas” e realidade errada passou a ser uma espécie de mote para o destino do país – e não apenas sob a tutela de Mário Centeno e António Costa. Já nos tempos de Passos Coelho, Vítor Gaspar ou Maria Luís Albuquerque, era essa a ortodoxia a que não podíamos escapar, embora vingasse então a doutrina castigadora e masoquista da austeridade (que, por razões ideológicas e conveniências da “geringonça”, Centeno e Costa fugiram a assumir). O ministro das Finanças ora cessante – e o seu sucessor, não por acaso conhecido como o artífice das “cativações” – sempre valorizou mais o saldo contabilístico do que a sensibilidade social exigida pelos problemas estruturais do país (hoje postos a nu pelo coronavírus).

A desmesurada importância concedida aos sucessivos e descontrolados “buracos” da Banca – culminando na situação cada vez mais absurda do Novo Banco –, em prejuízo do financiamento das políticas sociais, terá sido, aliás, um dos motivos da tensão e conflitos não assumidos entre Costa e Centeno. Mas a verdade é que, como hoje transparece da forma atabalhoada como o Governo geriu o dossier dos incêndios, a sobranceria das Finanças tornou-se também possível pela ausência de um verdadeiro programa de reformas – o qual só agora, por causa da covid-19 e com a expectativa alimentada pelos futuros fundos europeus, parece colocar-se no horizonte. Será desta que ultrapassaremos a fatalidade entre “contas certas” e realidade errada?

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