E quase tudo o vento levou, menos as saudades do passado

Para além de muitas outras coisas, quase todas belas do ponto de vista literário e cinematográfico, E Tudo o Vento Levou é, para a comunidade negra norte-americana, também uma espécie de Conta-me Como Foi em versão que saudades eu tenho do antigamente quando as pessoas podiam sair à noite sem medo de serem roubadas ou ainda pior.

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Cena de <i>E Tudo o Vento Levou</i>

Cansado de esperar pelo amor de Scarlett, Rhett faz as malas e desce as escadas em passo decidido, com ar de quem vai sair de casa sem se importar de deixar para trás aquele cachecol do Benfica, velho, esburacado e com nódoas de vinho, mas que tanta sorte lhe deu até às mais recentes jornadas do campeonato.

“Rhett, se te fores embora, para onde irei? O que irei fazer?”, suplica Scarlett, numa última e desesperada tentativa para mostrar a Rhett que uma década de mensagens ambíguas afinal foi apenas a sua forma de dizer que o ama.

“Francamente, minha querida, eu não quero saber”, diz Rhett nas legendas em português de Portugal, mal traduzido do inglês “fuck you” que lhe sai dos olhos e sem a carga do “I don’t give a damn” que está no livro e no guião. E numa última prova de que tudo acabou entre os dois, Rhett vira costas a Scarlett e parte em direcção a um horizonte ainda adormecido, embalado pelo denso nevoeiro da madrugada da Georgia.

The End.

De lágrimas nos olhos, e numa prova de grande coragem perante as adversidades da vida, os espectadores do filme E Tudo o Vento Levou mudam de canal porque está quase a começar O Preço Certo em Euros, e seguem alheios ao enredo diabólico que se desenrola nas suas costas.

À boleia de um fundamentalismo apocalíptico comparável às decapitações de pessoas e à destruição de estátuas naquela orgia de violência a que chamaram Estado Islâmico, os arautos do marxismo cultural e do politicamente correcto preparam-se para banir Rhett e Scarlett da memória das pessoas de bem — que diabos, o que eles querem mesmo é destruir o nosso modo de vida!

Ameaçadas por uma geração de meninos mimados apostada em deitar lixívia para cima da nossa História, as pessoas de bem ficam-se pelos títulos das notícias sobre a proibição do filme nos Estados Unidos e vêem-se impedidas de aceder às informações suplementares sobre a polémica, maquiavelicamente escondidas atrás de um clique no rato.

Afinal, o filme não ia ser banido nos Estados Unidos, mas sim retirado temporariamente de uma plataforma de streaming, para ser reposto, mais tarde, com uma explicação histórica sobre o contexto da época em que Rhett virou as costas a Scarlett e partiu em direcção a um horizonte ainda adormecido, etc. etc.

Ora, na época em que a jornalista Margaret Mitchell escreveu o romance E Tudo o Vento Levou, publicado em 1936, tinham passado 59 anos desde o fim abrupto de um dos períodos mais sensíveis da História dos Estados Unidos, conhecido como Reconstrução.

Depois da Guerra Civil de 1861-1865, que pôs os defensores do fim da escravatura a combaterem contra Rhett e Scarlett, houve uma década em que os vencedores (os defensores do fim da escravatura) quiseram impor aos vencidos (Rhett e Scarlett) um novo modo de vida.

Para grande desgraça de Scarlett, esse novo modo de vida trazia com ele uma coisa desconhecida chamada impostos e levava-lhe os pretinhos que tanta falta lhe faziam para apanhar algodão.

Para além de muitas outras coisas, quase todas belas do ponto de vista literário e cinematográfico, E Tudo o Vento Levou é, para a comunidade negra norte-americana, também uma espécie de Conta-me Como Foi em versão que saudades eu tenho do antigamente quando as pessoas podiam sair à noite sem medo de serem roubadas ou ainda pior.

Mas se a decisão da HBO de retirar temporariamente E Tudo o Vento Levou é uma coisa destes tempos em que o politicamente correcto vai dar cabo de nós e transformar o mundo numa bola de fogo, é porque não houve críticas e apelos a boicotes ao filme em outras épocas. Muito menos na época em que o filme estreou — se isso tivesse acontecido, era sinal de que tanto o politicamente correcto, como esta nova geração que quer apagar a nossa memória, sempre existiram de alguma forma, e o argumento teria de ser revisto. (Agora até eu fiquei confuso.)

Mas parece que foi mesmo assim que a coisa aconteceu.

“Os activistas negros responderam com acções e com palavras de ordem”, diz Leonard J. Leff, professor na Universidade Estadual do Oklahoma e autor de vários livros e artigos sobre cinema, num artigo publicado em 1999 na revista The Atlantic, em que recorda as reacções da comunidade negra à estreia do filme nos EUA.

“À medida que E Tudo o Vento Levou ia estreando nas cidades americanas no início da década de 1940, grupos organizados de negros pintaram cartazes e manifestaram-se em frente à entrada dos cinemas. ‘Vocês também seriam dóceis se fossem chicoteados!’, lia-se num cartaz à porta de uma sala em Washington. ‘E Tudo o Vento Levou glorifica a escravatura’ e ‘Os negros nunca foram escravos dóceis’, gritaram manifestantes em Chicago.”

Em Brooklyn, segundo o relato contemporâneo do Sun, à época o mais conservador dos jornais de referência nova-iorquinos, “um negro de 17 anos investiu contra um polícia como um ciclone”. “Depois de o jovem ter sido detido, os seus companheiros sentaram-se em protesto e prolongaram a ruidosa manifestação contra o filme”, recorda o artigo da Atlantic.

É o que eu digo, esta geração de há 80 anos de meninos mimados apostada em deitar lixívia para cima da nossa História ainda vai dar cabo de nós com o politicamente correcto e o marxismo cultural. Nem pensem que me obrigam a ter de carregar no botão do comando para passar por cima de uma explicação histórica antes de poder ouvir, mais uma vez, “Frankly, my dear, I don’t give a damn”.

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