Do the right thing” em Portugal traduziu-se para “Não dês bronca!”

Foi assim, há 31 anos, com o clássico filme de Spike Lee: uma má tradução para um cartaz. O bonito não vende tanto como o grosseiro mas, 31 anos passados, ainda vamos a tempo de “Fazer a coisa certa!”, especialmente na Assembleia da República.

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Manifestação anti-racismo em Lisboa Rui Gaudêncio

Estive na manifestação anti-racismo de Lisboa, que teve de se assumir pacífica antes de o ser. Foi sendo traduzida para português durante um percurso longo que ocupou a tarde toda, sem qualquer incidente. Adormeci de coração cheio. Foi um dia bom. Depois passei a tarde de domingo a escrever duas letras e a de segunda-feira a gravar, contagiado por esse amor. Pelo meio tive tempo para ver um especial sobre o Spike Lee e ler alguns jornais.

Num deles li, e depois encontrei o vídeo, em que a deputada Catarina Rocha Ferreira, do PSD, disse que “(...), do mesmo modo que condenamos qualquer acto de natureza racista (...) não podemos deixar de condenar a postura de alguns participantes (...) que mostraram mensagens que incitam ao ódio (....) e que contribuem para o agravamento do problema em vez de para a solução”, acrescentando ainda que “o problema não é de agora”. Fiquei a questionar-me se os problemas antigos, e que persistem, não deveriam ser precisamente aqueles que nos merecem mais atenção. Mas logo depois fiquei esclarecido com a solução apresentada pelo líder do seu partido para não agravar “o problema”. Qual problema? “Não há racismo em Portugal”, disse Rui Rio, ainda a preto e branco.

Assumir a sua existência é um dos nossos maiores desafios, e colocar o problema do racismo ao mesmo nível da postura de pontuais participantes, numa acção anti-racista, responsabilizando-os pelo agravamento do problema, pode ser mais forçado do que especular que esses poucos cartazes com slogans de ódio tenham sido plantados, numa manifestação que transbordou de incitamento ao amor e de apelo à equidade.

Devolvendo esse raciocínio, seria como concluirmos que os dois votos, contra e de abstenção, relativos a medidas anti-racistas, fossem um facto maior ou tão importante quanto o da votação que condenou o racismo na Assembleia da República.

As tentativas de colar a desordem ou de associar um partido a qualquer aspecto menos positivo desta manifestação são totalmente desnecessárias, mas esclarecem-nos e fazem prova de que os votos e depoimentos de alguns deputados não só não trazem soluções como denunciam uma parte essencial do problema: há racismo na Assembleia da República.

Para que não restem dúvidas: pode fazer-se melhor na rua? Claro que se pode e, no Parlamento, podem ser limpas todas as leis que agravam e não resolvem, como as do racismo e a da nacionalidade.

No futebol, por exemplo, é-nos fácil dissociar dos clubes, qualquer comportamento não desportivo por parte de adeptos, apontando como sendo um problema da sociedade. Mas a esta manifestação não lhe bastava ser representativa e pacífica. Ela tinha de ser perfeita. E segura, do ponto de vista de saúde pública, como os transportes públicos não conseguem ser. Faz-me recordar uma máxima repetida em muitas biografias de heróis: “Tens de ser 10 vezes melhor do que os teus colegas brancos”, disse a mãe de Spike Lee.

Ansioso pela próxima manifestação anti-racismo, em que se respeitem todas as regras de saúde e que, ao fazê-lo, não caibamos nas praças e tenhamos de ocupar as baixas de todas as cidades envolvidas, clamando por uma Lei do Racismo que complemente a campanha de educação, estabelecendo, definitivamente, uma linha vermelha.

P.S.: o cartaz que me ficou na cabeça foi “Meteram-se com a geração errada”.

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