O robô instala-se no distanciamento social

Os robôs estão entre nós e muitos foram trazidos pela mão da pandemia. Mas esse robô que se anuncia socialmente inteligente parece-me emocionalmente limitado.

A pandemia de SARS-CoV-2 paralisou longamente a maior parte das actividades humanas, ao mesmo tempo que acelerou vertiginosamente outras dinâmicas que há muito se vinham estruturando e agora se tornaram irreprimíveis.

Tem-se referido frequentemente a digitalização da sociedade; mas assistimos também à automação da nossa vida pessoal e colectiva. De facto, a pandemia converteu tecnologias do futuro, como a da robótica inteligente, em realidades do quotidiano. E um infantil espanto maravilhado perante a magia das primeiras experiências de uma máquina a mexer desenvolveu-se num adolescente entusiasmo pelo poder arrebatador de criar e controlar engenhos animados para realização das suas finalidades. Os robôs estão entre nós e muitos foram trazidos pela mão da pandemia.

Afinal, quantos entre nós, quantos entre os próprios profissionais de saúde esperariam, há meses atrás, ter um robô por colega? Mas assim é. Durante esta pandemia, eles têm sido integrados nas equipas de saúde desempenhando uma panóplia de funções extraordinariamente relevantes. Na Itália, como na Índia ou na Formosa, os robôs entregam os medicamentos aos doentes infectados com covid-19, e também alimentação, além de monitorizarem vários parâmetros clínicos remotamente transmitidos aos profissionais responsáveis. Esta sua actuação, a qualquer hora do dia ou da noite e sem carecer de pausas, abrevia o tempo de exposição dos profissionais de saúde ao coronavírus, diminui o risco de infecção destes, ao mesmo tempo que reduz a utilização do escasso material protector descartável. Nos Estados Unidos há robôs a proceder à triagem de pacientes suspeitos de covid​-19. Igualmente em unidades hospitalares, por exemplo na Bélgica, os robôs estão a ser utilizados para realizarem a desinfecção radical de espaços através de raios ultravioletas, estando já anunciado o desenvolvimento de um robô português com as mesmas funções. Aliás, eles asseguram a desinfecção de várias superfícies potencialmente contaminantes, como se verifica com a sua utilização regular na higienização do metro de Hong Kong ou dos autocarros na China.

Ainda no contexto do controle da infecção, os robôs têm sido chamados a patrulhar as ruas de cidades confinadas, como se verificou em Singapura ou na Tunísia, alertando para o cumprimento de ausência de contacto entre as pessoas ou fazendo cumprir quarentenas, vigiando igualmente a entrada de intrusos nas fronteiras de vários países, sempre incansáveis sondando espaços de difícil acesso humano. E também no reforço do confinamento, têm auxiliado na gestão doméstica como seja a aquisição de bens de primeira necessidade, evitando que as pessoas saiam de casa e prevenindo aglomerações nos supermercados.

De facto, podemo-nos deixar levar pela imaginação para tentar acompanhar o potencial dos robôs em facilitar interacções sociais básicas, garantindo o afastamento social. Eis precisamente o que me causa uma preocupação crescente à medida que o juvenil entusiasmo robótico se converte numa obsessão consistente. Quando, por exemplo, ouço um professor de Ciências Computacionais, de Edimburgo, anunciar o futuro robô de cuidados de saúde que procederá ao acolhimento de quem acorra a um hospital, num “atendimento sem mãos”, num “discurso sem toque”, garantindo um ambiente esterilizado, a prolongar pela acção do robô-médico e do robô-enfermeiro e também do robô-cuidador em casas de saúde, penso no valor terapêutico do olhar, do sorriso, do toque que a eficiência asséptica do robô não substituirá. Esse robô que se anuncia socialmente inteligente parece-me emocionalmente limitado.

A pandemia abriu a porta a uma nova geração de robôs, tornando cada vez mais irrealista a ingénua convicção de que apenas realizarão tarefas perigosas ou rotineiras, libertando os humanos para o lazer. O robô pode substituir profissionais qualificados, médicos e enfermeiros, professores, juristas, jornalistas… e ter ainda um impacto bem mais transformador do que o alarmista adágio do “roubo de empregos”. É que o deslumbramento pela robotização encontrará sempre boas razões para interpor o engenho tecnológico nas relações pessoais, numa pretensa mediação do seu afastamento que assim se poderá higienicamente manter, esquecendo que é na proximidade com os outros que construímos a nossa identidade e nos realizamos como pessoas. Não correremos o risco de atrofiar a diversidade vibrante das nossas interacções sociais à satisfação eficiente de requisitos mínimos de co-existência? O que me inquieta, pois, é que o distanciamento social profiláctico seja ocupado pelo robô esterilizante.

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