Jogo de nervos: o Reino Unido e as negociações comerciais com a União Europeia

Ao contrário do protagonista da Fúria de Viver, Boris Johnson é uma espécie de “rebelde com causa”. Apostou toda a sua carreira política em mostrar que os britânicos têm uma alternativa melhor à União Europeia.

1. Nem Boris Johnson nem Michel Barnier têm idade para serem “rebeldes sem causa” como o icónico James Dean no filme dos anos 1950 Fúria de Viver (Rebel Without a Cause). Mas, nos próximos meses, ambos vão provavelmente repetir nas negociações entre o Reino Unido e a União Europeia uma das mais memoráveis cenas desse filme — o chickie run. Claro que não irão fazê-lo da mesma forma que James Dean (Jim Stark) e Corey Allen (Buzz Gunderson) fizeram, numa corrida de automóveis em rota de colisão frontal (da qual Buzz Gunderson não conseguiu sair a tempo do carro e caiu de um penhasco).

Mas esse comportamento de risco extremo inspira a teoria dos jogos e os movimentos estratégicos. O “jogo chicken” é um modelo clássico de conflito entre dois jogadores no qual nenhum quer ceder, seja pelo intuito de maximização dos ganhos levado ao limite, seja por orgulho em não se mostrar chicken (medroso), seja pelas duas coisas. É assim um jogo de brinkmanship assente numa estratégia de empurrar o conflito para à beira do abismo na expectativa que a outra parte ceda primeiro. Envolve riscos nem todos controláveis racionalmente. No pior cenário, os resultados podem ser desastrosos para um dos jogadores, ou até para ambos.

2. Pelos factos que vão sendo conhecidos, tudo indica que o Governo de Boris Johnson está disposto a fazer um jogo similar ao chickie run com Michel Barnier e a União Europeia. Para além da própria personalidade de Boris Johnson, propensa a assumir riscos políticos e negociais elevados, há um conjunto de circunstâncias políticas que tendem a facilitar o recurso a essa estratégia. Comparativamente ao Governo anterior de Theresa May, Boris Johnson tem uma ampla maioria parlamentar que lhe permite ficar ao abrigo (em princípio) da turbulência política interna. Para além disso, a pandemia da Covid-19 — apesar da grande quebra que provocou na actividade económica — paradoxalmente beneficia essa estratégia política.

As medidas drásticas que tiveram de ser tomadas no Reino Unido e na União Europeia normalizaram a existência de controlos fronteiriços e afectaram, sob várias formas, as cadeias de produção e de abastecimento. Não foi um acaso o Governo britânico ter publicado em meados de Maio a sua nova tarefa aduaneira — a Tarifa Global do Reino Unido (UKGT) — a qual irá substituir, a 1 de Janeiro de 2021, a pauta aduaneira comum da União Europeia. No actual contexto, os custos internos em termos de opinião pública e a resistência da população britânica mais anti-Brexit à não concretização de um acordo comercial são os mais baixos de sempre desde o referendo de 2016. Assim, não pedir um alargamento do prazo negocial — o qual, nos termos do acordo transitório que vigora até finais de 2020, teria de ser feito até ao final de Junho —, encaixa na estratégia de levar as negociações à beira do abismo.

3. Na futura relação comercial está afastada a possibilidade de um acordo similar ao da Noruega e de outros países da Associação Europeia de Comércio Livre (EFTA). Nesse modelo existiria um acesso ao mercado único dos britânicos, em contrapartida de um alinhamento regulamentar e pagamento de contribuições à União. Seria uma ligação comercial muito próxima, mas com custos financeiros e de autonomia, o que a torna inaceitável para o actual Governo britânico. Em alternativa, Boris Johnson definiu como objectivo negocial do seu Governo chegar a um abrangente acordo comercial e de investimento num modelo próximo do negociado entre a União Europeia e o Canadá — o Acordo Económico e Comercial Global UE-Canadá (CETA).

Todavia, seja por bluff negocial ou por mudança convicta de ideias, parece agora estar predisposto a uma relação comercial similar à da Austrália com a União Europeia. Esta é fundamentalmente baseada nas regras da Organização Mundial de Comércio (OMC) com algumas melhorias pontuais. O cálculo parece ser o de que os benefícios de voltar a ter uma ampla autonomia para configurar a política comercial irão superar, com o tempo, as desvantagens da quebra da relação comercial com a União Europeia. Como notado, confia que as restrições aos movimentos de pessoas e o impacto na quebra do comércio internacional provocado pela Covid-19 — onde as cadeias de produção e de abastecimento já foram afectadas sob várias formas — permitem, em termos de gestão política interna, esse brinkmanship com a União Europeia.

Há assim uma aposta negocial britânica em deixar passar o tempo sem ceder nos temas mais importantes para si (serviços em geral, mercados financeiros, fiscalidade, acesso às águas territoriais, etc.) provocando um aumento do nervosismo na União Europeia, especialmente nos países que têm no Reino Unido um mercado importante. Antecipa obter condições mais favoráveis “à beira do abismo”, ou seja, nos finais do ano de 2020.

4. Com o esgotar do tempo, não será provavelmente Michel Barnier a figura central do processo negocial da parte da União Europeia, mas Angela Merkel. No segundo semestre de 2020 a Alemanha vai ocupar também a presidência do Conselho da União o que reforça a sua posição de centralidade na decisão europeia. Será ela a verdadeira jogadora do outro lado do chickie run que Boris Johnson parece disposto a fazer com a União Europeia sobre a relação comercial futura.

Mas Angela Merkel vai ter também tarefas extraordinariamente difíceis para se ocupar. Desde logo, desbloquear as negociações sobre o quadro financeiro plurianual 2021-2027 às quais acrescem agora as divergências europeias sobre o plano para recuperação da economia apresentado pela Comissão, envolvendo verbas de 750 mil milhões de euros. Certamente que irá tentar encontrar formas de superar as graves consequências da Covid-19 sobre a economia europeia, mas também de manter a coesão social e a unidade do mercado único. Mas a Alemanha não irá ver a negociação do acordo comercial com o Reino Unido de forma passiva, nem como um assunto menor. Nem se irá facilmente conformar com uma futura relação comercial feita apenas nos termos gerais das regras da OMC. A sua indústria automóvel e sector exportador foram duramente afectados pela pandemia e os britânicos são um mercado de primeira grandeza para os produtos germânicos.

5. Por tudo o referido, no seu cálculo estratégico Boris Johnson antecipa, como notado, que o jogo de nervos acabará por dar resultados (e está assim disposto a correr riscos elevados). Levará a uma flexibilização da posição europeia com o esgotar do tempo negocial, ajudada, entre outros factores, pela provável pressão interna da Alemanha nesse sentido e pelo eventual surgir de divisões europeias. Claro que também se pode enganar até porque o ano tem sido repleto de acontecimentos imprevistos e há demasiadas variáveis em jogo. Ao contrário do protagonista da Fúria de Viver, Boris Johnson é uma espécie de “rebelde com causa”. Apostou toda a sua carreira política em mostrar que os britânicos têm uma alternativa melhor à União Europeia. Os críticos mais cáusticos dirão que essa é uma rebeldia fora de tempo e irresponsável, imbuída da nostalgia de um passado britânico — e de um mundo — que já não existe.

Mas, para o bem ou para o mal, Boris Johnson tem o poder nas mãos. Procura ganhar a máxima autonomia na política comercial britânica com o mundo exterior e, ao mesmo tempo, mostrar que os 11 mil milhões de libras — valor líquido anual da contribuição do país para a União Europeia em 2018 — são melhor empregues na economia e sociedade britânica do que a financiar fundos e programas de que outros beneficiam. Seja como for, podemos imaginar o que seria a negociação europeia do próximo orçamento de longo prazo e do plano de recuperação da economia, se os britânicos ainda fossem membros da União. A Holanda, a Suécia, a Áustria, a Dinamarca e a Finlândia, entre outros, teriam um aliado de envergadura nessa negociação orçamental.

Por isso, não é apenas o Reino Unido que tem o problema da Escócia ou da Irlanda do Norte, o qual foi intensificado pelo Brexit. Se esses Estados do Norte da Europa ficarem descontentes com o acordo orçamental, vendo-o como uma sobrecarga excessiva para si próprios, e a estratégia britânica fora da União Europeia for bem-sucedida no longo prazo, não deixarão de olhar para esse caminho como alternativa futura.

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