Covid-19: quais as recomendações para a reanimação após afogamento?

Organizações de 17 países elaboraram uma proposta com recomendações para a realização de manobras de reanimação após situações de afogamento durante a pandemia de covid-19.

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ANTÓNIO CARRAPATO

Respiração boca-a-boca nas crianças, utilização de equipamentos de protecção individual e compressões torácicas nos adultos, caso as condições de segurança não estejam garantidas: são estas algumas das recomendações para a realização de manobras de reanimação após afogamento em plena pandemia de covid-19.

Trata-se de situações em que não é possível manter o distanciamento social em prol de salvar uma vida, sendo por isso necessário estipular orientações para que as manobras de reanimação em cenários de afogamento possam ser realizadas assegurando a prestação dos melhores cuidados possíveis à vítima e ao próprio socorrista.

As recomendações mencionadas constam de um relatório apresentado em nome da International Drowning Researchers Alliance (IDRA), uma aliança internacional de investigação sobre afogamentos, do Comité Médico da Federação Internacional para o Salvamento de Vidas (ILS-MC, na sigla inglesa) e da Federação Internacional de Resgate Marítimo (IMRF), e contou com a colaboração de várias instituições, incluindo o Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos da Universidade do Porto (UP) e o Instituto de Saúde Pública da UP.

As orientações foram desenvolvidas, entre Abril e Maio, com base no conhecimento científico actual sobre o novo coronavírus e sublinham que, durante a pandemia de covid-19, muitos procedimentos comuns de reanimação poderão ter de ser temporariamente abandonados, exigindo-se a implementação de “procedimentos alternativos” — que, no entanto, ainda não foram testados nem validados quanto à sua aplicabilidade, refere o documento.

Respiração boca-a-boca representa “elevado risco de transmissão”

Os especialistas começam por sublinhar que, ao contrário do que acontece noutras situações, a probabilidade de sobrevivência de uma pessoa que se afogou é determinada essencialmente no local “e depende da rapidez com que uma pessoa é retirada da água e é iniciado o processo de reanimação”. Porém, “é provável que a ressuscitação resulte na transmissão do SARS-CoV-2 através de gotículas e aerossóis da pessoa afogada para o socorrista”.

Neste sentido, qualquer pessoa que necessita de ser reanimada deve ser encarada pelos socorristas como potencialmente infecciosa, especialmente se forem relatados (pelos familiares ou acompanhantes) sintomas como febre, tosse, alteração do olfacto ou paladar ou se a pessoa em questão tiver realizado um teste de diagnóstico positivo para a covid-19 — embora os especialistas admitam que “esta informação será extremamente difícil de obter na altura da reanimação”.

As instituições que assinam o relatório defendem que “as organizações devem desenvolver novos protocolos”, onde constem os procedimentos para o uso de máscaras de reanimação (seja máscaras com um filtro para realizar a respiração boca-a-boca, de reanimação manual ou de oxigénio). Os especialistas consultados recomendam, porém, que seja dada prioridade à utilização de um sistema de reanimação manual balão-válvula-máscara (BVM) com um filtro HEPA.

Caso as organizações não consigam cumprir as recomendações apresentadas, se se desconhecer o risco de transmissão da covid-19 e não houver equipamentos de protecção disponíveis, sugere-se que sejam realizadas apenas manobras de reanimação cardiopulmonar através da compressão torácica (com a boca e nariz da pessoa tapada com um pano).

Respiração boca-a-boca em crianças

No local de reanimação devem estar o mínimo de pessoas possível e os socorristas devem fazer um prognóstico, analisando factores como o tempo que a pessoa esteve submersa e o período de tempo que passou desde o afogamento até ao início da reanimação, para poderem avaliar se os esforços de reanimação terão boa probabilidade (ou não) de resultarem.

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MANUEL ROBERTO

Os procedimentos de ventilação continuam a ser “a melhor prática” de reanimação em situações em que há uma baixa probabilidade de a pessoa afogada estar infectada pelo novo coronavírus ou quando o socorrista tem à sua disposição equipamentos de protecção individual adequados, sendo também recomendados quando uma criança se afoga. “As recomendações da Aliança Internacional dos Comités de Ressuscitação e do Conselho Europeu de Ressuscitação aconselham a realização da respiração boca-a-boca em crianças, uma vez que há uma grande probabilidade de as crianças beneficiarem desta forma de reanimação”, refere o documento, salientando que “há neste momento dados suficientes que confirmam que a prevalência da covid-19 em crianças é muito baixa” e que, ao que tudo indica, “as crianças desempenham um papel muito limitado na propagação do vírus”.

Estes procedimentos que envolvem a respiração boca-a-boca devem também ser utilizados em casos em que um familiar ou contacto próximo da pessoa afogada está presente no local e tem formação e capacidade para os realizar.

Quanto aos adultos, “há consenso” entre os especialistas (da Aliança Internacional dos Comités de Ressuscitação e outras organizações internacionais) de que os socorristas não devem realizar a respiração boca-a-boca sem qualquer dispositivo de barreira (como as máscaras de reanimação com filtros), uma vez que esta prática é encarada como “um procedimento de elevado risco de transmissão do SARS-CoV-2 durante a reanimação”, não sendo portanto recomendada. Além disso, não se devem realizar procedimentos de reanimação dentro de água.

A reanimação manual balão-válvula-máscara (BVM) realizada por duas pessoas é considerada adequada, sendo que um dos socorristas deve garantir que a máscara está bem colocada (de forma a minimizar a probabilidade de transmissão de partículas virais). Já a reanimação boca-a-boca com recurso a uma máscara (que funciona como dispositivo de barreira) representa, ainda assim, “um maior risco de infecção para os socorristas” devido à proximidade a que se encontram das vias áreas da pessoa em questão.

Equipamentos de protecção individual para meio aquático

“Em todas as reanimações”, os socorristas devem utilizar luvas, máscara facial e uma protecção para os olhos (como uma viseira), devendo também higienizar devidamente as mãos após cada intervenção ou contacto pessoal. Já as entidades que gerem equipas de resgate devem garantir que estão disponíveis equipamentos de protecção individual (EPI) suficientes para os profissionais e que estes sabem usar e remover os equipamentos com segurança.

“As organizações, cientistas e indústria devem juntar-se para desenvolver equipamentos e EPI aprimorados que correspondam aos requisitos específicos do meio aquático, de forma a proteger os socorristas na era da covid-19”, sublinha o documento, assinalando que é necessária mais investigação para compreender a eficácia dos EPI em meio aquático (como piscinas, praias e parques aquáticos).

A proposta estipula ainda que os socorristas (entre eles nadadores-salvadores e membros de equipas de resgate) que pertencem a grupos de risco não devem desempenhar funções que envolvam o contacto directo com outras pessoas. Além disso, cabe às organizações e entidades pressionar para que os socorristas estejam “entre os primeiros a ter acesso a uma vacina [assim que for desenvolvida] e prioridade no acesso aos testes” de diagnóstico à covid-19, estando ainda responsáveis por “desenvolver critérios claros” sobre as situações em que é “razoável” que uma equipa de resgate não inicie o procedimento de reanimação.

Relativamente à prevenção do afogamento, o relatório refere que “a proibição ou redução de todas as actividades aquáticas é uma consideração razoável, em locais e alturas em que o ónus da doença seja elevado”, destacando ainda que “os programas de prevenção de afogamentos devem ser actualizados de forma a reflectirem as mudanças nos procedimentos de resgate e ressuscitação devido à covid-19”. Além disso, os especialistas referem que estes programas devem ser realizados com mais regularidade, de forma a preparar a reaberturas dos parques aquáticos, mas deve ser evitado o contacto próximo durante as formações, especialmente em locais muito afectados pela pandemia de covid-19 — dando-se prioridade à prática de técnicas de reanimação em manequins e com equipamentos que possam ser devidamente limpos e descontaminados ou às aulas online.

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Francis Mascarenhas/REUTERS

A identificação das pessoas que frequentam parques aquáticos, praias ou rios poderá ser também uma ferramenta útil para que as autoridades possam avaliar o risco de infecção e a necessidade de adopção de medidas de protecção mais cautelosas, com o documento a destacar que “as organizações são aconselhadas a desenvolver métodos para o rastreamento de pessoas que entram nas instalações”, de forma a avaliarem possíveis sinais e sintomas da covid-19.

No entanto, o relatório salienta que os vários países e regiões encontram-se em diferentes fases da pandemia, tendo também diferentes abordagens para reduzir o impacto e conter a propagação do novo coronavírus, pelo que existem vários parâmetros que devem ser tidos em consideração antes da implementação destas práticas. Além disso, há diversas técnicas de reanimação após afogamento e diferentes contextos, pelo que poderá haver situações em que haja “recomendações nacionais ou leis” que impeçam a aplicação destas orientações, podendo haver ainda situações que exijam uma “improvisação urgente ou uma tomada de decisões” contrária ao recomendado. É por isso aconselhado que as entidades contactem as respectivas autoridades legais e de saúde dos seus países e regiões, de forma a clarificar quais as eventuais consequências legais da adopção de novos protocolos com novas regras, incluindo a possibilidade e não iniciar manobras de reanimação.

O documento recorda que “as organizações e funcionários têm uma obrigação ética de agir em função da segurança do socorrista” e sublinha que é necessária mais informação e investigação sobre o impacto das manobras de reanimação na eventual transmissão do novo coronavírus.

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