Fernando Pessoa e a estátua que se segue

Foram as frases retiradas de contexto? É justo acusar Fernando Pessoa de racismo? Ora, de acordo com o historiador José Barreto, Pessoa nunca teve publicamente qualquer atitude racista, nem nunca publicou uma linha de doutrina racista

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A estátua de Fernando Pessoa, numa mesa do Café A Brasileira, no Chiado, Lisboa Daniel Rocha

Em 2019, as vozes e os gritos ecoaram, acusando Fernando Pessoa de racismo. A polémica estalou depois da sugestão do nome de Pessoa para patrono de um programa de intercâmbio semelhante ao Erasmus entre as Comunidades dos Países de Língua Portuguesa.

À data, citavam-se várias frases da sua autoria como a prova irrefutável de uma visão racista do mundo, as quais reproduzo em seguida: “um zulu [da África do Sul] ou um landim [de Moçambique] não representam coisa alguma de útil neste mundo”; “O legítimo é obrigá-lo, visto que não é gente, a servir os fins da civilização”; “Ninguém ainda provou, por exemplo, que a abolição da escravatura fosse um bem social”, questionando de seguida: “Quem nos diz que a escravatura não seja uma lei natural da vida das sociedades sãs?; “A escravatura é a lei da vida, e não há outra lei, porque esta tem que cumprir-se, sem revolta possível. Uns nascem escravos, e a outros a escravidão é dada”.

Infelizmente, nos tempos que correm, este texto acaba aqui. Mais ninguém quererá saber sobre o contexto das frases de Pessoa, a sua origem ou o porquê da sua publicação. Não. Basta escrevê-las e apontar o dedo ao autor para, em breves minutos, termos a estátua de Pessoa à frente da Brasileira prontamente grafitada e decapitada em nome não de uma causa em tudo maior, mas da ignorância, maior que tudo o resto e ainda mais.

Mas, e porque ainda acredito na humanidade e na sua infinita capacidade de ultrapassar as piores intempéries, dedicarei os próximos parágrafos à contextualização das polémicas frases de Pessoa.

Começando pelas primeiras duas frases, estas foram retiradas de um texto intitulado Introdução ao estudo do problema nacional (ou Império), que, de acordo com o Arquivo Pessoa, não tem data. No texto, Pessoa fala sobre os “três graus” do imperialismo, cuja parte final diz o seguinte: “Recordemo-nos sempre que o fim de colonizar ou ocupar territórios não é civilizar a gente que lá está, mas sim levar para esses territórios elementos de civilização. O fim não é altruísta, mas puramente egoísta e civilizacional. É o prolongamento da sua própria civilização que o imperialismo expansivo busca e deve buscar; não é, de modo algum, as vantagens que daí possam advir para os habitantes desse país. A escravatura é lógica e legítima; um zulu ou um landim não representa coisa alguma de útil neste mundo. Civilizá-lo, quer religiosamente, quer de outra forma qualquer, é querer-lhe dar aquilo que ele não pode ter. O legítimo é obrigá-lo, visto que não é gente, a servir os fins da civilização. Escravizá-lo é que é lógico, o degenerado conceito igualitário, com que o cristianismo envenenou os nossos conceitos sociais, prejudicou, porém, esta lógica atitude. Povos, como o inglês, hipocritizaram o conceito, e assim conseguiram servir a civilização”.

A terceira frase faz parte de Régie, Monopólio, Liberdade, escrito por Pessoa em 1926. Neste texto, Pessoa debruçava-se sobre o papel do Estado na regularização do mercado de tabaco, os monopólios e a concorrência livre: “A lei aparentemente mais justa, a lei mais de acordo com os nossos sentimentos de equidade, pode ser contrária a qualquer lei natural, pois pode bem ser que as leis naturais nada tenham com a nossa ‘justiça’ e em nada se ajustem às nossas ideias do que é bom e justo. Por o que conhecemos da operação de algumas dessas leis — por exemplo, a da hereditariedade —, a Natureza parece frequentemente timbrar em ser injusta e tirânica. Ora não há certeza que a Natureza seja mais terna para a vida social do que para a vida individual. Ninguém ainda provou, por exemplo, que a abolição da escravatura fosse um bem social. Ninguém o provou, porque ninguém o pode provar. Quem nos diz que a escravatura não seja uma lei natural da vida das sociedades sãs? Ninguém o pode dizer, porque ninguém sabe quais são as leis naturais da vida das sociedades e essa pode portanto ser uma delas. A velha afirmação de Aristóteles — aliás tão pouco propenso a soluções ‘tirânicas’ — de que a escravatura é um dos fundamentos da vida social, pode dizer-se que ainda está de pé. E ainda está de pé porque não há com que deitá-la abaixo. A essência do que em política se chama “conservantismo” nasce directamente desta nossa”.

A última frase pode ser encontrada no Livro do Desassossego, no seguinte parágrafo: “A escravatura é a lei da vida, e não há outra lei, porque esta tem que cumprir-se, sem revolta possível nem refúgio que achar. Uns nascem escravos, outros tornam-se escravos, e a outros a escravidão é dada. O amor cobarde que todos temos à liberdade — que, se a tivéssemos, estranharíamos, por nova, repudiando-a — é o verdadeiro sinal do peso da nossa escravidão. Eu mesmo, que acabo de dizer que desejaria a cabana ou caverna onde estivesse livre da monotonia de tudo, que é a de mim, ousaria eu partir para essa cabana ou caverna, sabendo, por conhecimento, que, pois que a monotonia é de mim, a haveria sempre de ter comigo? Eu mesmo, que sufoco onde estou e porque estou, onde respiraria melhor, se a doença é dos meus pulmões e não das coisas que me cercam? Eu mesmo, que anseio alto pelo sol puro e os campos livres, pelo mar visível e o horizonte inteiro, quem me diz que não estranharia a cama, ou a comida, ou não ter que descer os oito lances de escada até à rua, ou não entrar na tabacaria da esquina, ou não trocar os bons-dias com o barbeiro ocioso?”.

Foram as frases retiradas de contexto? É justo acusar Fernando Pessoa de racismo? Ora, de acordo com o historiador José Barreto, Pessoa nunca teve publicamente qualquer atitude racista, nem nunca publicou uma linha de doutrina racista. Na verdade, ao falar em escravatura, Pessoa refere-se “à ‘plebe’, ao operariado moderno, do qual fala quase sempre com desprezo, traumatizado como ficou pelo sindicalismo revolucionário e pelo anarquismo bombista da I República”.

Conclusão, para Fernando Pessoa, os “escravos” eram os “operários em geral.

Sobre a escravatura propriamente dita, Barreto não tem conhecimento de nenhum documento no espólio pessoano que dê a entender que o autor defendia a escravatura, em muitos casos atacando-a, desprezando o racismo dos fascistas e dos nazis ou atacando o trabalho escravo perpetrado pelos ingleses nas minas sul-africanas”.

Cabe ao leitor, pois claro, tirar as suas próprias elações. Não creio, no entanto, depois desta extensa explicação, estar diante de uma personalidade de teor racista com uma visão discriminatória do mundo com base no tom de pele de cada um.

A ignorância, no entanto, é o maior de todos os males, e se por um lado não posso deixar de defender quem hoje luta contra séculos de opressão, morte, tortura e estupro, por outro nem todos os meios justificam os fins, ainda para mais quando os meios implicam o esquecimento das artes, da literatura, da memória e do conhecimento de quem não teve outra culpa senão a de criar. Receio, no entanto, ser o apelo ao raciocínio, à lógica e à calma uma causa perdida em tempos tão conturbados. Tenhamos esperança, portanto, mas também a certeza de uma outra estátua e um outro Pessoa para nos sentarmos a seu lado quando o mundo acordar.

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