Churchill foi finalmente enjaulado

Encaixotando a estátua de Churchill, as autoridades britânicas fogem da realidade, revelando fraqueza nas suas convicções e deixando os que apostam no radicalismo da vandalização a saborear a sua lamentável vitória.

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Estátua de Churchill em Londres "protegida" por uma caixa Reuters/JOHN SIBLEY

É doloroso para todos os defensores dos ideais da democracia liberal ver a estátua de Winston Churchill metida dentro de um caixote. E é uma vergonha maior para quem governa uma cidade e um país que ao longo da história tumultuosa do século XX se tornou uma referência na luta contra os totalitarismos e jamais prescindiu das suas regras constitucionais. Churchill, um homem que se distinguiu pela sua coragem física em guerras no Afeganistão, no Sudão, em Cuba, na África do Sul, que esteve nas trincheiras da linha da frente na I Guerra Mundial e jamais deixou de voar, até no auge do domínio hitleriano na Europa, é vítima da cobardia dos que hoje governam Londres e o Reino Unido. Como imagem simbólica de um tempo, a caixa que tapa Churchill é o triste sinal deste tempo. O tempo em que a democracia condescende com os que atacam os seus fundamentos.

Nas manifestações do fim-de-semana passado, a estátua tinha sido vandalizada e o vandalismo gerou consternação. Churchill é ainda hoje o símbolo de uma Inglaterra orgulhosa da sua história e, por isso mesmo, uma figura maior da consciência nacional dos britânicos. Ouviram-se naturalmente algumas vozes a censurar o vandalismo e, tarde e mal, o próprio Boris Johnson, que se diz (ou pretende ser) herdeiro dos seus valores, apareceu a contestar a irracionalidade do atentado. Percebeu-se também que o activismo cego pela crença de que a higienização acrítica do passado restaura a decência do presente é suficientemente inteligente para distinguir o homem que salvou a Europa da ameaça nazi de um comerciante de escravos, Edward Colson, a quem erigiram uma estátua em Bristol por ter deixado dinheiro à cidade. Mas nem o facto de Churchill estar fora da lista dos proscritos do activismo anti-racista foi suficiente para acomodar o medo das autoridades. Tinham de o meter numa caixa. “Absurdo e vergonhoso”, disse Boris Johnson. E ficou por aí.

Churchill odiaria esta solução. Churchill ficaria de peito aberto a desafiar quem o afrontasse. Dizer o que pensava e agir de acordo com as suas convicções estava na sua natureza. Iria à luta. Combateria. Fugiria, como fugiu da prisão na guerra anglo-boer, em 1899, tinha então 25 anos. Por muito que as suas opiniões racistas e imperialistas sobre negros, indianos ou chineses nos soem hoje como uma aberração e tenham de ser vistas como uma nódoa negra na sua memória, ainda que a sua brutalidade em actos como o afundamento da marinha francesa na Argélia, na II Guerra Mundial, e a consequente morte de milhares de franceses, os bombardeamentos de civis alemães em cidades como Dresden ou a repressão que ordenou na Irlanda maculem a sua biografia, Churchill é um daqueles raros homens que ajudou a Europa e a Humanidade a caminhar no bom sentido. Defender o seu legado, mesmo que censurando as suas nódoas e máculas, é por isso uma obrigação de todos os que defendem os valores democráticos.

Essa defesa não se faz escondendo-lhe a imagem numa patética tentativa de proteger o seu legado. Faz-se no combate das opiniões entre pessoas que, muito à custa da sua herança, têm total liberdade para o fazer. E faz-se nos termos e limites da lei. Encaixotando a sua estátua, as autoridades britânicas não seguem nem uma nem a outra via. Preferem fugir da realidade, revelando fraqueza nas suas convicções e deixando os que apostam no radicalismo da vandalização a saborear a sua lamentável vitória.

Se fosse necessário reforçar a protecção policial da estátua, percebia-se num gesto preventivo. Se fosse necessário convocar as pessoas para manifestarem publicamente o seu repúdio contra o vandalismo e o apagamento da memória, entendia-se como acto de pedagogia. O que é impensável e inaceitável é virar a cara aos problemas e enjaular numa caixa um símbolo indiscutível e precioso da liberdade europeia. Mais do que uma pichagem de um energúmeno, são actos de desistência e de cobardia como estes que ameaçam os fundamentos das democracias.

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