Revistas científicas vão rever avaliação por pares após estudo controverso sobre hidroxicloroquina

Investigação do jornal The Guardian expôs falhas na base de dados de estudo que apontava efeitos adversos no uso de hidroxicloroquina para o tratamento da covid-19. Revistas que publicaram artigo não fizeram a revisão dos dados estatísticos em bruto.

Foto
Doente em unidade de cuidados intensivos Miguel Manso

Algumas das mais conceituadas revistas científicas vão alterar o processo de revisão de estudos, depois de uma investigação do jornal britânico The Guardian ter revelado defeitos graves numa base de dados que serviu como alicerce para um estudo que avaliava o impacto de fármacos usados para a malária no tratamento de pacientes infectados com covid-19.

O trabalho em causa baseou-se na base de dados da empresa de análise Surgisphere, que teria recolhido registos médicos de 96 mil pacientes hospitalizados entre Dezembro e Abril em 671 hospitais. Ao que o jornal britânico apurou, os dados em bruto do estudo publicado em duas das mais conceituadas revistas da área científica, a The Lancet e a New England Journal of Medicine, não foram analisados pelos revisores antes da publicação.

Publicado a 22 de Maio na The Lancet, o estudo em questão levou à suspensão de ensaios clínicos com hidroxicloroquina em todo o mundo, pois concluía que o medicamento não era benéfico para doentes hospitalizados com covid-19 e podia até ser prejudicial. Os autores do estudo afirmam “não ter conseguido confirmar o benefício da hidroxicloroquina ou da cloroquina” nos doentes analisados, apontando para efeitos adversos potencialmente graves, incluindo “um aumento da mortalidade”, durante a hospitalização de doentes com covid-19, e um aumento nos problemas cardíacos.

Esta situação reacendeu o debate entre cientistas sobre a importância da revisão pelos pares. Esta revisão serve para detectar eventuais falhas e erros nos dados em que os estudos se baseiam. Este processo antecede a publicação de qualquer estudo e é uma das etapas fundamentais para a validação e credibilização junto da comunidade científica. Uma fonte da The Lancet diz ao The Guardian que o estudo foi analisado por quatro especialistas externos e um revisor de estatística. Contudo, nenhum dos avaliadores teve acesso aos dados em bruto recolhidos pela Surgisphere.

Uma porta-voz da New England Journal of Medicine (onde também foi publicado um outro artigo com dados da Surgisphere) diz ao jornal britânico que a revista não tinha especialistas neste tipo de dados — com uma amostra grande e com base em registos médicos electrónicos —, razão pela qual as justificações dadas pelos autores às perguntas levantadas pela equipa de revisão foram aceites. Após uma avaliação interna, a mesma fonte garante que a equipa irá colmatar essa falha, estando de momento a desenvolver directrizes que permitam melhorar a avaliação destes estudos.

A The Lancet não explicou em detalhe como é que os dados foram aceites pelos revisores, adiantando apenas que foi feita a tradicional análise independente a que todos os artigos são sujeitos. “Estamos a avaliar as nossas exigências para a partilha de dados e validação entre autores e a partilha de dados a seguir à publicação”, afirmou uma porta-voz da revista.

No seguimento deste estudo, várias entidades recomendaram a interrupção do tratamento com hidroxicloroquina. França, Bélgica, Itália e Portugal pararam de usar o fármaco em pacientes com covid-19, mas a Organização Mundial da Saúde (OMS), após as dúvidas levantadas por centenas de cientistas quanto à validade deste artigo científico, decidiu retomar os ensaios clínicos nestes doentes. 

Sugerir correcção