Os dias da pandemia

A pandemia ainda não terminou. A comprovação da importância basilar do SNS, tão claramente demonstrada, implica que tiremos conclusões atempadas. Por isso, a necessidade de regulamentar a Lei de Bases da Saúde é, agora, imperiosa e urgente.

Durante mais de dois meses, o SNS foi obrigado a pôr à prova toda a sua capacidade de resposta a uma pandemia de características pouco precisas, desencadeada por um vírus com uma invulgar capacidade de contágio e propagação, com uma evolução imprevisível, obrigando a tomar medidas que nunca antes tinham sido testadas nem comprovadas. Actualmente, os aspectos principais desta doença infecto-contagiosa, principalmente a sua patogenicidade, já são suficientemente conhecidos, mercê de uma intensa capacidade de descobrir a maneira de se disseminar e os mecanismos de infecção. Isso tem permitido que as autoridades de saúde se tenham rodeado de toda a informação disponível para melhor a combater e circunscrever os seus efeitos mais nocivos.

Apesar disso, circunstâncias que fogem à intervenção das organizações de saúde têm impedido que a pandemia tenha vindo a ser circunscrita e diminuído as suas consequências com a rapidez desejada. De qualquer maneira, há que referir e valorizar o papel da Organização Mundial da Saúde e do seu secretário-geral, Tedros Adhanom Ghebreyesus. No plano internacional, deve-se à equipa por ele liderada a competência e a capacidade de saber lidar com um acontecimento que nunca tinha ocorrido na história recente.

Há que lembrar que os quatro primeiros casos notificados em Portugal se verificaram a 2 de Março de 2020, do sexo masculino e do grupo etário 30-69 anos. Hoje, passados mais de três meses após o início da epidemia no nosso país, verificamos que, com as medidas tomadas, foi aparentemente conseguido o controlo da situação. Comparativamente com os países da Europa dos 15, no número de casos de população infectada e na mortalidade, por milhão de habitantes, ocupamos a mediana dos valores desses países, o mesmo acontecendo com o número de casos internados em UCI.

Várias condições têm contribuído para explicar os resultados obtidos até ao momento por Portugal, sendo de destacar os seguintes:

  • A liderança política (Governo e Ministério da Saúde), que interpretou correcta e atempadamente a importância das acções a desenvolver;
  • O acerto relativamente precoce das políticas sectoriais;
  • Um dispositivo local que, embora informal, tem sido capaz de acudir, mobilizar os agentes locais e encontrar soluções adequadas às necessidades mais imediatas, e transmitir confiança às pessoas e comunidades; neste aspecto, a decisão pelo isolamento precoce e voluntário terá representado a medida que maiores benefícios trouxe à situação epidemiológica em que actualmente nos encontramos, criando uma cordão sanitário doméstico, demonstrando que a aplicação do princípio da precaução evita maiores danos;
  • A competência e dedicação extrema da maioria dos profissionais da saúde, seja na reorganização do trabalho, onde a complementaridade multiprofissional garantiu que fossem rentabilizadas as várias competências profissionais pela horizontalidade das respostas, e também pelo esforço coletivo e individual que implicou reorganização e mudança de serviços, cancelamento de férias, corte de permanência com os seus filhos durante semanas para os proteger;
  • O espírito de solidariedade e entreajuda demonstrados por quem viveu de perto os efeitos sociais da pandemia.

Naquilo que correu menos bem há que referir as respostas deficientes das estruturas intermédias, pesadas e ineficientes a exigirem que sejam equacionadas para funções mais necessárias à ligação entre as organizações locais e central do SNS.

A pandemia tem representado uma experiência única para milhões de portugueses e é uma oportunidade de aprendizagem que não deve ser desperdiçada. Demonstrou inequivocamente a importância do SNS, sem o qual estaríamos agora a braços com uma situação particularmente complexa e de desfecho imprevisível. A coerência, a consistência, a coesão e a orgânica que sobreviveram do espírito que presidiu à criação do SNS foram os pilares fundamentais para uma resposta ajustada a uma crise tão inesperada. Mesmo delapidado e empobrecido, foram as características intrínsecas do nosso SNS que permitiram que assim fosse. Mas a pandemia ainda não terminou. A comprovação da importância basilar do SNS, tão claramente demonstrada, implica que tiremos conclusões atempadas. Por isso, a necessidade de regulamentar a Lei de Bases da Saúde é, agora, imperiosa e urgente.

As condições já descritas permitiram a Portugal uma boa resposta mas, para que a aprendizagem seja frutífera, devem referir-se alguns aspectos menos positivos, nomeadamente: deficiente e relutante apoio aos profissionais de saúde, falta de prevenção e humanismo nos lares, grave interrupção no apoio a outras situações de morbilidade, falta de respeito por direitos e garantias individuais, como a discriminação e perda de autonomia imposta às pessoas mais velhas, deficiente proteção e cumprimento dos direitos das crianças e aumento de desemprego e pobreza.

Só alterando estas condições se poderá conseguir que os profissionais de saúde se sintam valorizados, que se verifiquem menores implicações sobre pessoas portadoras de outras morbilidades, que aos idosos sejam oferecidas melhores condições (nos lares ou em casa), que as crianças sejam mais protegidas, que a pobreza e o desemprego não sejam o rasto prolongado da crise sanitária

Trata-se, de uma vez por todas, de retirar todas as lições do que se passou, porque a doença continua aí, com as suas manifestações individuais e colectivas, a exigirem que lhes dêem resposta, e o imperativo de proporcionar ao SNS todos os recursos de que carece. E se existe uma Lei de Bases da Saúde, e a necessidade de a regulamentar, este é o tempo de meter mãos à obra antes que a velha normalidade dos interesses regresse e entre em cena todo o cortejo de narizes postiços e falsas cabeleiras.

Subscritores

Américo Figueiredo (médico, professor de Medicina), Ana Feijão (médica), Ana Matos Pires (médica), Ana Prata (jurista), André Barata (filósofo), André Carmo (geógrafo, professor universitário e dirigente sindical), André Freire (politólogo), André Gonçalves Pereira (jurista), António Avelãs (professor e ex-dirigente sindical), António Diogo (médico), António Faria-Vaz (médico), António Borga (jornalista), António Cluny (jurista), António Serzedelo (dirigente da Associação Opus Diversidade), António Teodoro (professor universitário), Armando Brito de Sá (médico), Augusta Sousa (enfermeira e ex-bastonária da Ordem dos Enfermeiros), Carlos Matos Gomes (militar e escritor), Carlos Ramalhão (médico), Cipriano Justo (médico), Corália Vicente (matemática), Daniel Adrião (consultor), Daniel Sampaio (médico e professor universitário), David Barreira (psicólogo), Domingos Lopes (advogado), Fernando Gomes (neurocirurgião), Fernando Martinho (médico), Fernando Rosas (historiador), Francisco Crespo (médico), Gregória von Amann (médica), Guadalupe Simões (enfermeira e dirigente sindical), Helena Roseta (arquitecta), Heloísa Santos (médica), J.-Nobre Correia (professor emérito da Université Libre de Bruxelles), Jaime Correia de Sousa (médico), Jaime Mendes (médico), João Álvaro Correia da Cunha (médico, ex-presidente e director clínico do Centro Hospitalar Lisboa Norte), João Lavinha (investigador), João Proença (médico), José Alberto Pitacas (economista), José Aranda da Silva (farmacêutico e ex-bastonário da Ordem dos Farmacêuticos), José Carlos Martins (enfermeiro e dirigente sindical), José Manuel Calheiros (médico), José Manuel Mendes (presidente da Associação Portuguesa de Escritores), José Maria Castro Caldas (economista), José Munhoz Frade (médico), Jorge Espírito Santo (médico), José Reis (economista), Luísa Branco Vicente (psiquiatra e pedopsiquiatra), Luísa d’Espiney (enfermeira), Manuel Carvalho da Silva (sociólogo), Maria Antónia Lavinha (médica), Maria Deolinda Barata (médica), Maria do Rosário Gama (professora aposentada, fundadora da APRe!), Maria João Andrade (médica), Maria Manuel Deveza (médica), Mariana Neto (médica), Mário Jorge Neves (médico), Nídia Zózimo (médica), Paulo Fidalgo (médico), Pedro Lopes Ferreira (economista da saúde), Ricardo Sá Fernandes (advogado), Rui Graça Feijó (investigador), Rui Pato (médico, ex-presidente do Centro Hospitalar de Coimbra), Sérgio Esperança (médico), Sérgio Manso Pinheiro (gestor de Mobilidade-AML), Sílvia Vasconcelos (médica veterinária), Teresa Dias Coelho (pintora), Teresa Gago (médica dentista)

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