Preparar o que aí vem…

A educação e a escola têm, agora, de corresponder de modo inovador ao desafio atual. Em lugar de uma estratégia defensiva, devemos preparar-nos para não ser apanhados novamente desprevenidos.

“Um objetivo sem um plano é apenas um desejo”
Antoine de Saint-Exupéry

Giorgio Agamben deu o grito de alerta em Itália: “corremos o risco de vermos abolido o nosso próximo.” Perante a pandemia e o confinamento chegamos à conclusão de que, em abstrato, é possível funcionar a distância, em linha, sem as relações diretas, olhos nos olhos, mas isso é só em abstrato. É extraordinário podermos contar com a comunicação digital, mas é insuficiente, sobretudo quando falamos das relações humanas, da educação e da cultura, do conhecimento, da sabedoria, mas também da ciência e da técnica. O que tem mais valor não tem preço e o desenvolvimento humano obriga a compreender que a cooperação e a solidariedade são para a humanidade o que a biodiversidade é para os seres vivos. As máquinas não vão substituir o contacto entre seres humanos.

Lembrando-me do exercício que tive o gosto de coordenar sobre a definição do perfil dos alunos no fim do ensino obrigatório, não posso esquecer que a liberdade, a responsabilidade e a cidadania exigem presença, autonomia, risco. É verdade que a situação atual não oferecia alternativa – havia que usar a distância no ensino para salvaguardar a presença futura. Mas importa, desde já, preparar a sequência. Por isso, José Tolentino Mendonça disse: “Não é possível excluir o corpo da escola, pois é através dele que damos significação ao mundo, maturando os diversos saberes e exercitando a responsabilidade pela inteira existência” (Expresso, 30.5.2020). Perante uma situação excecional, tivemos de encontrar respostas excecionais, mas urge agora delinear com inteligência novas saídas. Afinal, se reforçarmos a liberdade e a responsabilidade pessoal podemos combater melhor os efeitos da pandemia, prevenir e salvaguardar a saúde pública e reforçar a cidadania democrática e o desenvolvimento económico.

Foi por falta de transparência e descrença na responsabilidade cívica das pessoas e das instituições que muitas soluções falharam. Temos, assim, de reconhecer as virtualidades e as limitações da solução possível encontrada – a distância e o confinamento. Agravam-se as desigualdades, afetam-se os mais frágeis, comprometem-se os níveis mais precoces de aprendizagem. A educação e a escola têm, agora, de corresponder de modo inovador ao desafio atual. Imediatamente, não havia margem de manobra, mas temos de pensar a ligação entre desenvolvimento, saúde pública, liberdade, responsabilidade e cidadania. Veja-se como avançámos na consciência de que o consumismo e a destruição do meio ambiente podem ter respostas positivas, através da equidade intergeracional e da justiça distributiva… Em lugar de uma estratégia defensiva, devemos preparar-nos para não ser apanhados novamente desprevenidos.

Importa contrariar os riscos de agravamento das desigualdades e da exclusão – tomando consciência de um dilema paradoxal contemporâneo, entre Cila e Caríbdis, vivemos entre a uniformização e a fragmentação. E Edgar Morin tem insistido na necessidade de tirar lições da brutal situação em que ficámos: quanto de essencial perdemos no culto do acessório, quanta liberdade perdemos no medo. Volto ao tema do perfil do cidadão do século XXI: importa complementar os avanços do mundo digital e do ensino a distância com maior cooperação interpessoal, com os bons efeitos das redes, com o favorecimento da dimensão internacional, contra os egoísmos nacionalistas. O patriotismo cívico e constitucional prospetivo é essencial, com o cosmopolitismo centrado no respeito mútuo. Urge adequar, na aprendizagem de qualidade, motivação, exigência, trabalho, capacidade de resolver problemas, cuidado, atenção e entreajuda.

Se queremos melhor democracia, temos de dar tempo ao tempo, para que a reflexão não seja substituída pela manipulação. É verdade que o ensino, no seu conjunto, pode sair da pandemia mais preparado para aproveitar as tecnologias e as novas correntes de aprendizagem, mas temos de cuidar dos que não podem ser abandonados, favorecendo a criatividade e a cooperação pessoal. No dilema saúde/economia, o valor fundamental é o da vida, da existência, da liberdade, da igualdade e da fraternidade… O capital social e a confiança obrigam ao que Adela Cortina designa como “amizade cívica” (El Pais, 16.5.2020). Só com esta estaremos mais preparados para afrontar próximas epidemias e ameaças de destruição da humanidade…

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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